quarta-feira, 11 de maio de 2011

Queima das Fitas ou a Vingança da Caricatura

Primeiros dias de Maio é tempo de festividades universitárias. Ler Eduardo Lourenço não pode alhear-se de tal facto, mesmo que confesse não ser especialmente adepto da praxe académica. Uma questão de geração, certamente. Mas o que se passava em Coimbra no mês Maio de 1944? É difícil hoje imaginar, emboras a consulta de um livro de curso, no caso dos quartanistas da Faculdade de Letras, reserve algumas novidades, como adiante se verá. Quem eram os estudantes dos Cursos desta Faculdade (em que ao contrário de outras não se entrava a descer, Rodrigues Lapa dixit) que terminavam estudos no ano lectivo de 1943-1944?


Muitos desses nomes serão amplamente desconhecidos à maioria dos visitantes deste blog, mas da lista completa dos fitados destacam-se alguns estudantes. Desde logo, Carlos Alberto Serras de Oliveira, ou seja, o poeta Carlos de Oliveira, um dos escritores mais notáveis da literatura portuguesa do século passado. Mas também desse mesmo curso de Ciências Histórico-Filosóficas constam dois nomes que tiveram alguma importância nas letras portuguesas. É o caso de Mário (Augusto de Almeida) Braga que mereceu um certo relevo como contista e, por outro lado, Raul (Rodrigues) Gomes que, juntamente com Carlos Vaz, foi o fundador em 1942 (ou seja, em pleno Curso!) da revista Vértice - revista de cultura e arte, publicação que viria a ser um emblema maior do neo-realismo coimbrão. Colega e amigo destes três estudantes de História e Filosofia na Universidade de Coimbra, depara-se o leitor do Livro de Curso dos Quartanistas de 1943-1944 com a caricatura de ... Eduardo Lourenço de Faria!

Este desenho, realizado por Mário Braga, já foi publicado, ilustrando um delicioso texto de memórias do que o caricaturista chama aqueles “Verdes anos”, na revista Prelo-Revista da Imprensa Nacional/Casa da Moeda  (nº especial, Lisboa, Maio de 1984, pp. 100-104). O texto “Diálogo da sua essência”, dedicado ao quartanista Eduardo Lourenço de Faria, foi redigido (por motivos que o próprio texto explica) por êle mesmo [sic!] e também ele já tinha sido divulgado em Tempos de Eduardo Lourenço. Fotobiografia (Org. de Maria Manuela Cruzeiro; Maria Manuel Baptista), Porto, Campo das Letras, 2008, p. 66. Mas vislumbra-se nesta quase surrealista dramaturgia (com três personagens: telefone, êle e a pitonisa) um tópico da obra de Eduardo Lourenço: o do  impossível auto-retrato, neste caso agudizado por aquilo a que êle mesmo chama uma «caricatura tão impossível como a sua». Tão impossível que as (supostas) «4 quadras [pedidas] a 4 moças bonitas (...) à última hora (...) ainda não chegaram». De uma caricatura quartanista não se espera, com certeza (embora muitos casos desmintam esta que deveria ser uma regra de ouro, transformando de tal modo os caricaturados que assim ficam irreconhecivelmente favorecidos...), um elogio das qualidades fisionómicas do estudante, mas segundo Mário Braga o seu amigo não terá ficado muito satisfeito: «fui eu quem fiz a caricatura do Eduardo para o nosso livro da Queima da Fitas, e ele, achando-se talvez ainda mais feio do que na realidade era, vingou-se de mim nos versos que pôs ao lado da minha» (“Verdes anos”, Prelo, p. 104).

Aqui fica, portanto, a Vingança da Caricatura, onde se pode descortinar uma ironia muito fina e já um elevado rigor conceptual, como se pode ver na distinção entre amoral e imoral. Ler Eduardo Lourenço procurou nesta preciosa relíquia bibliográfica (descoberta num alfabarrista perto da Praça das Flores em Lisboa) outros textos do estudante êle mesmo. E, de facto, encontrou alguns versos assinados por Eduardo ... presumivelmente ... Lourenço de Faria, mas, se para a caricatura de Carlos de Oliveira foram escolhidos versejadores consagrados do neo-realismo (João José Cochofel, Joaquim Namorado, Rui Feijó e ... Carlos de Oliveira lui-même), no caso de Raúl Gomes, apenas surge um único texto, assinado por pseudónimo misterioso: um. Quem será este um? Pelo estilo, apetece arriscar que terá sido redigido por um heterodoxo. Quem sabe?