Trata-se, talvez, da primeira entrevista de fundo concedida por Eduardo Lourenço à imprensa, publicada no Suplemento Literário do matutino portuense Jornal de Notícias. No Natal de 1969 (a peça, de página e meia, saiu no dia 24 de Dezembro), o ensaísta não era, propriamente, um desconhecido no mundo literário português, mas a verdade é que as suas obrigações profissionais no estrangeiro nem sempre permitiam que acompanhasse de perto as incidências da vida cultural portuguesa. E, talvez mais grave, essa ausência não facilitava a divulgação do pensamento de um escritor cuja escrita (caligrafia incluída) nem sempre prima pela clareza e nitidez. Percebe-se, pois, a intenção de Serafim Ferreira ao apresentar Eduardo Lourenço ao leitor do diário nortenho.
JN 24/XII/1969, p. 18 |
A entrevista merece leitura atenta e cuidada, pois constitui uma óptima introdução à figura e à obra do na altura já autor das duas Heterodoxias. Durante a conversa o ensaísta discorre sobre a sua condição: «um ensaísta é uma consciência infeliz, uma serpente que morde a sua própria cauda...», enquanto discute com António Sérgio e o seu Mestre Sílvio Lima. Analisa também o momento literário da época que, do seu ponto de vista, «possui uma excepcional vitalidade», destacando na poesia António Ramos Rosa, Luísa Neto Jorge e, numa das poucas referências que há em toda sua obra ao autor de Os Passos em Volta, «o magma poético de Herberto Helder». No quadro da prosa, os nomes citados pelo entrevistado são José Cardoso Pires, João Palma-Ferreira, Maria Isabel Barreno, Luís Pacheco, Maria Judite de Carvalho e, num aceno de simpatia, que hoje se sabe tão característico da sua personalidade, o visitante de Vence menciona o livro do seu anfitrião Litoral do Espanto. Esta reflexão merece ser enquadrada com a discussão mais vasta que Eduardo Lourenço manterá com Nélson de Matos acerca do conceito de literatura desenvolta, mormente nas páginas da revista O Tempo e o Modo.
Capa do romance de Serafim Ferreira Litoral do Espanto |
O contexto próximo da entrevista é, todavia, o da publicação do volume Sentido e a Forma da Poesia Neo-Realista (Ulisseia, 1968). Instado por Serafim Ferreira a pronunciar-se sobre a controvérsia suscitada pelo livro junto da crítica, Eduardo Lourenço afirma: «Os críticos têm sempre razão. E é bem feito para aqueles que preferem ler as críticas antes das obras. No meu caso aliás, a dupla e contrária crítica acertou em cheio: o livrinho é, na verdade, ao mesmo tempo (será proibido?) uma consideração positiva do neo-realismo e uma arrumação dele nas prateleiras da História onde está (e a minha geração com ele). O meu ensaio desejou-se, além de viagem nostálgica às paragens e paisagens de uma geração que foi (e é) a minha, um exorcismo. Escrevi-o para poder falar de outra coisa e para ajudar, se é possível, a minha geração a libertar-se dos seus fantasmas. Isto parecerá supérfluo ou anacrónico às novas gerações, mas elas mesmas exorcizarão mais tarde os seus fantasmas de hoje» (Jornal de Notícias, 24/XII/1969, p. 18).
Ler Eduardo Lourenço reconhece, ao folhear agora as longas páginas do II Volume das Obras Completas do ensaísta e que debatem incansavelmente a problemática neo-realista, que este trabalho de exorcização (mas não é toda ela, também, uma auto-exorcização?) ficou, por aqueles anos, bem longe ainda do seu encerramento. E hoje? Nas próximas semanas talvez seja já possível começar a responder a esta e a outras perguntas.