sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Lídia não gosta de Bach

Foto Ler Eduardo Lourenço

A publicação há dois anos do livro Tempo da Música, Música do Tempo, volume de fragmentos e micro-ensaios, quase todos inéditos e pacientemente organizados por Barbara Aniello, de Eduardo Lourenço sobre a arte a que o poeta Jorge de Sena dedicou um dos seus títulos mais conhecidos, veio finalmente chamar a atenção para aquela que é, sem dúvida, uma das mais paixões do ensaísta.

Mais ou menos por essa época, realizou-se em Lisboa o Ciclo de Conferências Construtores do Mundo que encerrou justamente 10 de Dezembro de 2012, com uma palestra de Eduardo Lourenço. E, na sequência deste ciclo, foi editado pela Associação Sons da Lusofonia um disco em vinil (cuja capa em cima se reproduz) com o significativo título: Eduardo Lourenço Playlist. Ou seja, uma espécie de músicas na minha vida que, no caso em apreço, deveria talvez em rigor chamar-se músicas da vida dele.
Carlos Martins
É que a selecção de composições foi realizada pelo saxofonista Carlos Martins, director artístico do Ciclo de Conferências Construtores do Mundo que, em nota incluída no disco, explica todo o processo: «[as] escolhas musicais [foram] feitas por mim a partir do livro Tempo da Música, Música do Tempo deste extraordinário pensador, ouvinte e construtor. Enquanto ouvinte, Eduardo Lourenço tem uma invulgar capacidade de relacionar a música com as palavras e as construções das suas frases, muitas vezes cheias de brilhante poesia, criam ambientes de pura sensibilidade que nos remetem para uma outra audição mais profunda e apaixonada. Nestas passagens do livro que me inspirou, com dezenas de referências musicais e outros mais textos a acompanhá-las, Eduardo Lourenço criou para nós um outro mundo, onde o fascínio e a paixão pela audição do universo musical é uma via para o sagrado. Eis uma grande luz para os críticos musicais.
A minha selecção, num gesto quase impossível, foi inspirada em dois momentos:
1. Bach, pelas razões que podem ler nos textos do próprio construtor e, porque mesmo que a Música do nosso tempo fosse aquilo que hoje é, sem Bach ficaríamos privados de um Universo onde “a comunicação humana com paraíso” se concretizou com infinita pureza e esplendor.
2. Debussy/ Ravel/Schönberg - Música que abriu caminho para todas as músicas que hoje povoam o nosso mundo e que são em si mesmas plasticidades sonoras das combinações instrumentais, à excepção do piano solo de Ravel, espelhos sonoros que criam uma atmosfera tão iniciática que parece que as ouvimos ainda com a frescura da “primeira manhã da criação”. A música que pratico, o jazz, deve muito a estes compositores aqui apresentados, e eu fico a dever a Eduardo Lourenço a luminosidade e a interioridade que deixou no meu coração com a audição e a leitura da sua grande playlist que compõe o seu livro».

 

O disco começa, de facto, com Tocata e fuga de Johann Sebastian Bach (de que aqui se apresenta uma versão), a que se segue, do mesmo autor, Missa em si menor. Depois comparecem Debussy (Martírio de S. Sebastião/Fragmentos Sinfónicos), Ravel (Gaspard de la nuit) e, por fim, Schönberg (Noite Transfigurada). O convite de Carlos Martins deve ser aceite e o leitor de Eduardo Lourenço pode, sem dúvida, realizar o exercício de ler os textos de Tempo da Música, Música do Tempo relacionando-os com a audição das composições de no livro se fala. Ainda assim, e como curiosidade, Ler Eduardo Lourenço repesca dois excertos do volume: o primeiro dedicado à Tocata e fuga de Bach e o segundo, já anteriormente conhecido através de uma selecção de fragmentos do diário de Eduardo Lourenço vinda a lume no jornal Público (21/IV/1996) e,  que tomando o músico alemão como pretexto, é pouco menos que delicioso:

1. «É o mais belo começo que jamais foi escrito, o mergulhar mais fundo no oceano da música. As próprias aberturas de Beeth[oven] empalidecem junto deste juízo final, desta vinda tumultuosa e divina do arcanjo da ressurreição» (Tempo da Música, Música do Tempo, Gradiva, 2012, p. 107). 
 2. «“O senhor doutor está a ouvir ópera? Ai não, é música da câmara. Em Portugal só quando morre assim alguma personagem é que põem essa música da câmara. Tenho-lhe cá uma raiva!
Que Bach me perdoe. Estas reflexões de Lídia, se não são umas definições de música da câmara, são uma descrição de Portugal.»
E, assim, Lídia, na altura (o texto leva a data de 29 de Março de 1967) empregada doméstica na casa de Annie e do Monsieur Faria, passou a ser uma personagem nesta espécie de romance diário que é todo o ensaísmo de Eduardo Lourenço. 
Bach decerto perdoará.