Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista (capa da primeira edição, 1968) |
Desde a sua primeira edição, surgida em 1968, que Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista de Eduardo Lourenço parece ter merecido larga atenção da crítica. De facto, na imprensa do Porto e de Lisboa da época foram diversas as referências ao livro de um autor que, também (mas não só) por viver em França, não tinha o reconhecimento de que hoje indiscutivelmente goza na vida cultural portuguesa. Sem qualquer preocupação de exaustividade, é possível recordar algumas das recensões, mais ou menos críticas (embora quase sempre elogiosas) que apareceram nas páginas literárias e nas revistas do segundo semestre do ano que, em Paris, deu um novo sentido à palavra Maio. Dessas leituras (cujo interesse, qualidade e importância não é, evidentemente, sempre o mesmo) daqui se dará hoje da efectuada por Eduardo Prado Coelho, celebrando-se assim a novíssima edição do II Volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço, Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista e outros ensaios (Lisboa, Gulbenkian, 2014).
Eduardo Prado Coelho escreve duas recensões a Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista em 1968 |
Para ser inteiramente rigoroso, importa começar por registar que o artigo tem duas partes – mais tarde reunidas, expurgadas de gralhas e completadas em O Reino Flutuante. Exercícios sobre a razão e o discurso (Lisboa, Edições 70, 1973, pp. 149-161) –, nas quais Eduardo Prado Coelho dedica a sua atenção àquela «que é com certeza uma obra modelar para a crítica literária em Portugal» (Diário de Lisboa, 15/VIII/1968, p. 8). Não cabe aqui discutir tudo o que está em jogo no diálogo que se vai estabelecendo entre os dois Eduardos. Eduardo Prado Coelho, naquela que é sem dúvida uma das leituras mais pregnantes que até hoje se fizeram de Sentido e Forma, avança uma série de reservas conceptuais e metodológicas que exigem uma cuidadosa revisitação. Uma pista possível apenas: será que Poesia 61 (ou seja, poetas como Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta e Casimiro de Brito) se move fora do universo neo-realista? Eduardo Prado Coelho parece sugerir o contrário, dizendo que, para além das diferenças que saltam à vista, pode haver uma maior fidelidade estética onde se julga que ela não existe.
Eduardo Lourenço não levou a mal o tom crítico da recensão do Eduardo mais jovem. Pelo contrário. Nasceu aí uma enorme amizade ficou para sempre. Lendo uma carta que este escreverá no final do ano de 1968 em Lisboa, percebe-se que o autor criticado gostou de o ter sido e desse gosto fez saber também por carta ao seu crítico que, por seu turno, confessa: «Meu caro Eduardo Lourenço: Foi com grande alegria que recebi a sua carta» (Eduardo Prado Coelho, “Carta a Eduardo Lourenço”, Lisboa, 28/XII/1968, Colóquio-Letras, nº 171, Maio de 2009, pp. 403-406). A missiva de Eduardo Lourenço não está, tanto quanto se saiba, publicada, mas, a avaliar pela resposta, deverá ser fascinante e assim justifica a “grande alegria” de Eduardo Prado Coelho, na altura apenas com vinte e quatro anos, embora já com uma importante presença na cena literária lisboeta. Nessa carta (ela também com um valor documental extraordinário), o jovem crítico chama a atenção para o facto de os seus textos não terem sido integralmente publicados no jornal:
Eduardo Lourenço não levou a mal o tom crítico da recensão do Eduardo mais jovem. Pelo contrário. Nasceu aí uma enorme amizade ficou para sempre. Lendo uma carta que este escreverá no final do ano de 1968 em Lisboa, percebe-se que o autor criticado gostou de o ter sido e desse gosto fez saber também por carta ao seu crítico que, por seu turno, confessa: «Meu caro Eduardo Lourenço: Foi com grande alegria que recebi a sua carta» (Eduardo Prado Coelho, “Carta a Eduardo Lourenço”, Lisboa, 28/XII/1968, Colóquio-Letras, nº 171, Maio de 2009, pp. 403-406). A missiva de Eduardo Lourenço não está, tanto quanto se saiba, publicada, mas, a avaliar pela resposta, deverá ser fascinante e assim justifica a “grande alegria” de Eduardo Prado Coelho, na altura apenas com vinte e quatro anos, embora já com uma importante presença na cena literária lisboeta. Nessa carta (ela também com um valor documental extraordinário), o jovem crítico chama a atenção para o facto de os seus textos não terem sido integralmente publicados no jornal:
«A minha crítica tinha dois cortes: a par de Carlos de Oliveira, […] e
Lautréamont, havia o nome de Herberto Helder. Mas [o polémico livro] a Apresentação do Rosto tinha-o tornado temporariamente maldito, e a
Censura eliminou-o. Na segunda parte, no 4º parágrafo, faltam vários
períodos. Eu tentava encontrar a coexistência entre a sua definição de
poesia e o projecto neo-realista, servindo-me das suas próprias frases;
“canto de paraíso ausente”, etc. Também isso a Censura cortou» (Ibidem,
p. 406). De facto, na versão do texto que aparece no livro O Reino
Flutuante, quer o nome de Herberto Helder, quer o excerto eliminado pela
censura (e que, em rigor, é uma citação directa do próprio texto de Eduardo
Lourenço) já aparecem.
Herberto Helder terá passado a ser autor maldito para a censura do Estado Novo depois do polémico Apresentação do rosto |
José Marinho assina uma das duas recensões críticas ao livro de Eduardo Lourenço na revista Colóquio |
Por outro lado, Eduardo Prado Coelho anuncia um outro artigo sobre o livro Sentido e Forma, justificando-o através de motivos bastante prosaicos: «Fiz uma versão desta crítica para a revista Colóquio com intuito meramente económico. Com o texto de José Marinho, não sei que destino levará. Mas, como trabalho, é desprovido de interesse: puro resumo e desenvolvimento jornalístico das ideias centrais do texto do Diário de Lisboa» (Ibidem). O resto da carta explica os apertos financeiros do jovem crítico, na altura recém-casado e com «uma filha de 16 meses – que é a Alexandra» (Ibidem, p. 405). A verdade é que a Colóquio acabou por publicar duas recensões ao livro de Eduardo Lourenço. Assim, em Outubro aparece o texto de José Marinho que, por diversas razões, justificaria uma análise mais pormenorizada. Com a data de Dezembro, mas tendo chegado às bancas provavelmente um pouco mais tarde, o nº 51 da revista apresenta o segundo artigo de Eduardo Prado Coelho que, ao contrário do que este parece dizer, traz pelo menos um dado novo, a saber: «Preocupou-se Eduardo Lourenço, e em alto grau, com o pormenor, com a análise esmiuçada, com a leitura terra a terra, edição a edição, dos autores de que se decidiu ocupar. Lamentemos apenas que Mário Dionísio seja excluído do projecto, dado que o seu testemunho seria significativo» (Eduardo Prado Coelho, “Eduardo Lourenço Sentido e Forma da Poesia Neo-realista”, Colóquio, nº 51, Lisboa, Dezembro de 1968, p. 73).
Mário Dionísio: um dos ausentes de Sentido e Forma? |
Ora, esse lamento é feito pelo próprio Eduardo Lourenço que, em nota de rodapé, afirma: «Lamentamos, por deficiência de documentação, não poder contrastar como se devia e requeria o caso destes três poetas com os de um Namora e sobretudo de Mário Dionísio e Manuel da Fonseca» (Sentido e Forma da Poesia Neo-realista, Lisboa, Ulisseia, 1968, p. 18). As atribulações da vida do novus pater familiae justificam decerto a não leitura desta confissão em pé de página. Um pormenor que não desmerece em nada a agudeza interpretativa do jovem crítico. Também por isso Ler Eduardo Lourenço não poderia estar mais de acordo com as muito recentes palavras de Delfim Sardo que admitiu: «Tenho umas saudades imensas de Eduardo Prado Coelho.» (http://www.publico.pt/portugal/noticia/o-intelectual-acabou-1670055).