Eduardo Lourenço na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa (foto de Pedro Loureiro publicada na revista Ler. Livros & Leitores, nº 72, Setembro de 2008) |
«O único rio que desci com gosto durante a vida foi o da preguiça. Suponho que tinha a forma da minha alma pois me converteu numa espécie de forçado. Nunca nadei contra a corrente. Todos os ribeiros da minha infância confluiriam para esse rio da preguiça como galgos e nessa alegre companhia desci pela minha vida como outros sobem. O resultado é o mesmo. Perto do meu coração corria o Tempo. Para não perder o contacto com a sua mão sempre jovem não olhei nunca para o lugar que acabava de deixar. A preguiça serve-me de anjo da guarda, presença deixada naquele lugar onde ninguém atina voltar. Ela me conservou próximo de mim, pois as razões porque não avancei para os cimos onde vemos o mundo pequeno e o mundo nos vê maiores do que somos, foram as imensas e sempre adiadas tarefas que nunca tive tempo de acabar. Aliás, mal as comecei. Enquanto os meus amigos se inventaram árvores de alto porte passei trinta anos a ver os meus braços transformar-se em galhos mortos como os dos santões do Ganges.
Não nasci senão para ver e ouvir. O resto é superior às minhas forças e aos meus dons. O rio branco da preguiça estava correndo antes de eu nascer, não seria eu que o levaria ao mar. O meu gosto é seguir-lhe as margens, cortar rodelas de sabugueiro e correr atrás delas, como em garoto, deslumbrado pela música luminosa da corrente.»
Perspectiva da antiga casa em Vence (foto de Rui Jacinto) |
*O texto que hoje aqui se reproduz é um excerto sem título do famoso diário de Eduardo Lourenço e foi escrito em Montpellier em 4 de Dezembro de 1956. Apareceu publicado inicialmente na série “Espelho que volto com lentidão para mim...Fragmentos de um diário inédito”, Prelo, Lisboa, número especial, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Maio de 1984, p. 117.