quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Pela Rua Ferreira Borges abaixo e acima


Jorge de Sena
Num extraordinário poema, escrito a catorze de Dezembro de 1971 e publicado pela primeira vez  no livro póstumo Visão Perpétua, Jorge de Sena escreve a dado passo:

(…) E sou clássico, barroco, romântico, 
discursivo, surrealista, anti-surrealista, 
obnóxio, católico, comunista, 
conforme as raivas de cada um. (…)

 Cumpre dizer, sobretudo num autor que sempre visou demarcar-se de qualquer poética confessional, que estes versos desaconselham, como é óbvio, qualquer leitura literal. Todo o poema, conhecido pelo primeiro verso “Quando há trinta anos…”, pode ser interpretado como um exercício, do qual não está ausente a (auto-)ironia e que radica numa estratégia literária análoga ao método da teologia negativa. Por outras palavras, tudo o que Jorge de Sena diz que os outros («aquela tropa») dizem a seu respeito «não deu resultado». Isto é, a sucessão infinita de definições que os outros dele fazem acaba por demonstrar a sua indefinibilidade. Deste modo, quando Sena afirma que é comunista, tal só pode significar precisamente o oposto. Aliás, isso mesmo deriva do facto de essa e todas as outras afirmações citadas dependerem sempre das “raivas de cada um”.

Em nenhuma circunstância, o poema “Quando há trinta anos…” parece referir-se explicitamente à revista Cadernos de Poesia a que, como se sabe, Jorge de Sena esteve intimamente ligado. Mesmo que seja arriscado interpretar silêncios, essa ausência merece ser assinalada. Como referem Luís Adriano Carlos e Joana Matos Frias, o peculiar “grupo” dos Cadernos de Poesia «procurou integrar a consciência modernista da linguagem, menosprezada pelo Neo-Realismo, numa consciência ética da poesia que os poetas de Orpheu jamais assumiram» (“Introdução. A poesia é só uma ou as palavras contra o tempo”, Cadernos de Poesia. Reprodução fac-similada, Porto, Campo das Letras, 2004, p. X). Ainda que alguns estudantes mais distraídos asseverem o contrário (e Ler Eduardo Lourenço conhece pelo menos um caso desses), é possível concluir, com razoável segurança, que a poesia de Jorge de Sena nunca foi neo-realista. De resto, o crítico Jorge de Sena também se distancia, sem tergiversações, da estética da revista Vértice. Num texto escrito na mesma época de “Quando há trinta anos…”, esses anos duplamente iniciais são revisitados do seguinte modo: «Entre 1938 e 1944, estrearam-se em volume os jovens poetas que se arregimentavam no chamado “neo-realismo” (muito formalmente devedores a Álvaro de Campos no verso livre, ou a Torga, nos metros tradicionais), e os que constituíram os Cadernos de Poesia, mais cientes do que os grupos anteriores e seus contemporâneos quanto ao que se passara e passava na poesia ocidental» (Estudos de Literatura Portuguesa – III, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 120). E Jorge de Sena vai até mais longe, falando em «incipiência agressiva», em «intenções políticas fazendo as vezes de vivência poética» e até em poemas «mais políticos e circunstanciais» enquanto características da poesia neo-realista que, ainda assim, apresenta várias excepções a esta regra (Carlos de Oliveira e Manuel da Fonseca, em especial). Outras passagens poderiam ser aqui mencionadas, mas esta introdução já vai extensa. 


Rua Ferreira Borges (Coimbra): a foto retrata uma manifestação de estudantes em 1969
 Em 1968, ou seja três anos antes dos textos de Sena que temos vindo a citar, Eduardo Lourenço envia ao Amigo um exemplar do seu novo livro Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista (Ulisseia), esperando naturalmente que o poeta e crítico se pronunciasse acerca da exegese que aí é feita da poesia de João José Cochofel, Joaquim Namorado e Carlos de Oliveira. Da reacção de Jorge Sena a Sentido e Forma temos ecos em duas cartas enviadas a Eduardo Lourenço. Assim, em post-scriptum à missiva com a data de Roma a 29 de Novembro de 1968, pode ler-se: «Sei que o seu livro me chegou ao Wisconsin [onde Sena lecionou na Universidade entre 1965 e 1970). E folheei-o em casa do [poeta José] Terra, em Paris» (Eduardo Lourenço/Jorge de Sena. Correspondência, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991, p. 73). Em 18 de Junho do ano seguinte, e já de novo em Madison, pois a sua longa viagem pela Europa terminara com a vinda a Portugal na época do Natal, Jorge de Sena escreve ao Amigo sobre o livro deste. «O seu livro sobre os neo-realistas chegou-me já não me lembro onde nem como. A dizer a verdade que eu penso, acho uma despesa de generosa inteligência e brilhante prosa como é a sua, com gente que estimável não merecia tanto. Mas compreendo perfeitamente que V. sentisse necessidade dele – não é impunemente que a gente pode crescer juntos pela Rua Ferreira Borges abaixo e acima. Eu tenho andado mergulhado na leitura deles e dos mais outros, para a reedição revista e actualizada das minhas Líricas Portuguesas, que também estou a preparar. E por certo que alguns deles são dos mais interessantes, embora a poesia de quase todos, sem a garantia “partidária”, não possa ser tida como “poesia social”. Nem socialmente eles o são: todos membros da grande burguesia ou da pequena aristocracia provincial, e vivendo dos rendimentos às vezes pingues. Mas em Portugal as pessoas nunca foram julgadas pelo que realmente fazem, mas pelo que se assume que são» (Ibidem, p. 78). 
Reprodução da primeira página de um texto inédito de Eduardo Lourenço sobre a sua participação no movimento do neo-realismo coimbrão nos anos Quarenta do século passado (imagem retirada do II volume das Obras Completas)


Estas palavras de Jorge de Sena têm qualquer coisa de ambíguo. Se, por um lado, há alguma condescendência com o projecto do Amigo que teria escrito o livro por uma espécie de solidariedade geracional – e, em rigor, Eduardo Lourenço nunca virá a opor-se a que se leia assim esta obra – por outro, Sena não deixa de aludir a mais duas coisas. A primeira delas tem a ver com o facto de alguns dos poetas neo-realistas serem “dos mais interessantes” daquele período que, bem vistas as coisas, é também o seu. A segunda prende-se com o facto, sociologicamente indesmentível, de esses poetas “serem todos membros da grande burguesia ou da pequena aristocracia provincial” e, por isso…  
Ler Eduardo Lourenço ousa desconfiar que Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, conjunto de ensaios de um autor que, recorde-se, também colaborou em Cadernos de Poesia com um surpreendente texto sobre Pascoaes (“Tinham-me dito que ele viria...”, Cadernos de Poesia, 3ª série, nº 14, p. 14 e 29-30), tenha ajudado Sena a refrear alguma da sua proverbial impiedade contra a poesia e os poetas neo-realistas*. 
Eis aqui mais um óptimo pretexto para regressar a esse livro que, muito brevemente, chegará às livrarias integrado no II Volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço, uma edição da Fundação Calouste Gulbenkian que reúne ainda um conjunto significativo de textos do ensaísta do e sobre o seu tempo de Coimbra.


* Sobre este assunto, cf. o magnífco estudo de Gilda Santos “À volta do Neorrealismo português, segundo Jorge de Sena”, disponível em http://www.lerjorgedesena.letras.ufrj.br/ressonancias/pesquisa/ufrj/edit-a-volta-do-neorrealismo-portugues-segundo-jorge-de-sena/.