segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Quem é Edmundo Lucena?

Em A Criação do Mundo, livro de que Ler Eduardo Lourenço se confessa grande admirador, Miguel Torga evoca como é sabido as tertúlias que se realizavam no seu consultório sito ao Largo da Portagem, em Coimbra e cuja placa identificativa a seguir se reproduz.
A páginas tantas, podemos ler o que se segue (a digitalização é feita, com a devida vénia, da 3º edição de 2002, pp. 556-557):

São já vários os estudos publicados que dedicam a sua atenção às relações pessoais e literárias entre Miguel Torga (Adolfo Rocha) e Eduardo Lourenço. Cf., por exemplo, de Carlos Mendes de Sousa o ensaio que trata dessa conversa inacabada e que aparece no número especial dedicado ao ensaísta pela Colóquio-Letras (nº 171, Maio/Agosto de 2009, pp. 167-199). Mas ao que Ler Eduardo Lourenço julga saber, nunca até hoje ninguém revelou a identidade deste «assistente de filosofia, a respirar inteligência e inquietação». E, no entanto, parece tão óbvio.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Um pr(o)émio, algumas (des)leituras e uma dedicatória

Ler Eduardo Lourenço atribui a Pessoa Revisitado. Leitura Estruturante do Drama em Gente [Porto, Editorial Inova, 1974] um lugar especial na obra de que é leitor. Nisso, como em muitas outras coisas – o que não é o mesmo que dizer em todas –, não discorda do ensaísta. O que talvez não seja necessariamente uma vantagem. Gostaria Ler Eduardo Lourenço de ser capaz de aplicar com mais assiduidade uma espécie de princípio metodológico que encontrou no texto que abre a reedição que o livro conhece sete anos depois e que levou o título “Singular pr(o)émio”: «leio sempre com atenção redobrada os autores com que não concordo de todo» [Fernando Pessoa Revisitado. Leitura Estruturante do Drama em Gente, Porto, Moraes, 1981, 2ª ed., p. 12. Registe-se a ligeiríssima alteração no nome do livro que voltará à forma inicial na 3ª edição, já de 2000]. É mais fácil ler aquilo em que, de algum modo, nos reconhecemos. E, no entanto, a experiência inversa pode tornar-se bem mais enriquecedora…
Mas do que se tratava agora era de (re)ler Pessoa Revisitado. Mais precisamente o referido proémio que começa por assinalar uma de (pelo menos) duas histórias que fizeram deste um livro infeliz, pois «em princípio, os livros felizes não têm história» [p.11]. Os livros felizes lêem-se, os outros deslêem-se, embora a palavra desleitura, tantas vezes escrita por Eduardo Lourenço, leve dentro de si o acto de quem lê. Caso fosse essa uma questão de escolha, poder-se-ia dizer que Pessoa Revisitado não escolheu uma boa altura para chegar a este mundo. No Portugal de 1974, outras tarefas e outras leituras eram, necessariamente, mais urgentes. Daí um certo pessoano silêncio numa época em que, ruidosa e por vezes estridentemente revolucionária, se fazia ouvir a liberdade ou, como reconhece o autor, «Pessoa Revisitado ficou então eclipsado pelo merecido sucesso de um desses textos que são ou fazem História antes de ser escrita. Com esse sacrifício me regozijei» [Ibid].
No entanto, três anos volvidos, Eduardo Lourenço é surpreendido ao receber uma carta que anuncia uma «vaga recompensa como autor de A Pessoa Revisitada» [Ibid]. Estranho prémio aquele que se dá a um livro que, no mesmo lance, é rebaptizado. «O lapso de tempo, o júri entretanto evaporado (arrependido?), a peripécia revolucionária explicam sem dúvida a deliciosa metamorfose de um título. Espero que Pessoa tenha achado justa a punição que todos os críticos merecem só por sê-lo. Eu achei-lhe graça, naturalmente». Terá sido esta uma das primeiras (des)leituras que o ensaio-romance (a expressão é do próprio Eduardo Lourenço) mereceu. Outras se lhe seguiram, mas claro que não é esta a ocasião de retraçar esses percursos mais ou menos polémicos, todos eles decerto interessantes.



A de João Gaspar Simões, cuja interpretação psicanalítica (mas o adjectivo tem aqui – como tantas vezes acontece, aliás – um significado muito pessoal) do poeta da Ode Marítima havia sido objecto de cerrada crítica em Pessoa Revisitado, não é a menos importante, com toda a certeza. E o singular proémio também à história de tal (des)leitura não deixa de se referir. Vale a pena por isso a releitura. É que talvez a história dos livros (uns mais felizes do que outros...) seja também a de uma sucessão de leituras e desleituras que continuamente se (des)fazem. Ler Eduardo Lourenço descobriu há alguns anos na Biblioteca Municpal da Figueira da Foz, onde se guarda parte do espólio daquele que foi, durante décadas, a personificação do Crítico das Letras portuguesas, um exemplar da segunda edição de Pessoa Revisitado, com a dedicatória que a seguir se reproduz: «A João Gaspar Simões que com tanta benevolência acolheu estas páginas (ou este “romance”), com a homenagem do seu velho leitor e admirador, Eduardo Lourenço. Vence, 23 de Julho de 1981». Ler Eduardo Lourenço resiste sem esforço à tentação de extrair das linhas que se seguem qualquer explicação psicanalítica, limitando-se a registar que também as (des)leituras podem ser benevolentes, mesmo ou sobretudo quando não se concorda de todo com elas. Nessa altura apenas há que lhe dedicar uma atenção redobrada. É o que Pessoa Revisitado faz à exegese pessoana de Gaspar Simões e é também, Ler Eduardo Lourenço seria incapaz de defender outra coisa, o que o Crítico faz ao ensaio-romance. Com mais ou com menos benevolência. [Cf. “Eduardo Lourenço Pessoa Revisitado, Leitura Estruturante do Drama em Gente”, Diário de Notícias, Lisboa, 27/VI/1974].

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

As Seis Sibilas

Durante os anos 50, quando leccionou Filosofia na Universidade da Bahia, Eduardo Lourenço esteve ligado à organização do IV Colóquio Internacional de Estudos Luso Brasileiros que se realizou de 10 a 21 de Agosto de 1959.
Maria de Lourdes Soares, que prepara o Volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço a que foi dado o título Tempo Brasileiro, ao publicar recentemente quatro cartas de Agostinho da Silva (cf. “Cartas de Agostinho da Silva a Eduardo Lourenço”, Colóquio-Letras, nº 171, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Maio de 2009, pp. 313-323), assinala em nota 4 à carta datada em “Santa Catarina, 12 de Abril de 1959” que o Colóquio foi um «evento de grande porte realizado […] durante o reitorado de Edgard Santos, sob o Patrocínio da Universidade da Bahia e da Unesco. Marcello Caetano […] presidiu à Comissão Coordenadora em Portugal, instituída “com o propósito de organizar a participação oficial portuguesa no evento”. Hélio Simões actuou como secretário-geral do Colóquio e Eduardo Lourenço como um dos secretários da Comissão Organizadora» (Ibidem, p. 321).
Para contrabalançar os nomes da participação oficial portuguesa, Casais Monteiro e Eduardo Lourenço aconselharam os Organizadores de modo a que outras figuras pudessem também estar presentes. Até ao momento, e referindo-se sempre ao convite feito para participarem no Congresso, foi possível encontrar no Acervo de Eduardo Lourenço cartas de Jorge de Sena, Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Lopes Graça, Fernando Guimarães, Delfim Santos, Mário Chicó, Joel Serrão, José Fernandes Fafe e Agustina Bessa-Luís cuja resposta, inédita, é a carta que a seguir se transcreve. Mas, por Agustina Bessa-Luís ter antes enviado a Eduardo Lourenço o seu romance A Sibila, este agradece-lhe enviando um postal com seis Sibilas: «em troca de uma pobre sibila rústica devolve-me agora seis…».
Questionado, em inícios de 2008, sobre que imagem teria sido enviada para suscitar o início desta carta, Eduardo Lourenço referiu-se vagamente a um dos pórticos da catedral de Saint-Sauveur (1504) em Aix-en-Provence. Mas meses mais tarde recordando a pergunta feita, envia o postal que se reproduz, escrevendo: «Vence 17 de Dezembro de 2009: Caríssimo João Nuno: Pelo “amarelisado” deve ser género do que em tempos (há 50 anos?) enviei d’Aix à Agustina. As famosas Sibilas para saudar A Sibila em nome do nosso Reino. Para si estas sábias e misteriosas criaturas devem-lhe levar desejos de Paz que não tenho e desejo aos outros. […] O maior abraço do seu muito amigo, Eduardo.» [JNA]






Meu Exmo Amigo, Dr. Eduardo Lourenço:

Em troca de uma pobre Sibila rústica, devolve-me agora seis deliciosas mulherzinhas com atributos de sabedoria e baldaquinos reais. Agradeço uma por uma – a primeira por bela, a segunda por ser cheia de superior inocência, a terceira porque é grave, a quarta altiva, a quinta, penetrante, a sexta severa.
É muito agradável receber palavras como as que me escreveu assinadas por um nome de grande prestígio e valor como é o seu. A viagem que eu fizesse ao Brasil teria um objectivo que considero importante, o de travar conhecimento com amigos dignos de que os mares se abram para deixar passar a amizade. Mas não sei, não sei. Mando, em princípio a adesão ao colóquio, mas se as viagens não forem previstas na alta folha do orçamento da Universidade da Bahia, não poderei comparecer. E assim, se um dia descer às praias de Salvador, prove as águas do Atlântico e notará que estão muito mais salgadas; é das lágrimas que chorarei por não ir daqui, com a minha comunicação cultural sobre uma coisa que se chamará, talvez, “o escritor e a terra”; e viajar sobretudo com alegria de verão europeu e com o excelente propósito de encontrar amigos pelo pensamento e pela pátria comum.

A m.to grata e admiradora
Agustina Bessa-Luís

Porto, 18 de Janeiro de 1959

"Da nossa casa em Coimbra via-se o campo de Santa Cruz"

Numa semana em que a Associação Académica de Coimbra recebe o Benfica em jogo a contar para o Campeonato Nacional de Futebol, Ler Eduardo Lourenço recupera um texto de memórias do ensaísta que evoca os áureos anos Quarenta em que a Briosa, equipa composta exclusivamente por estudantes da Universidade, batia o pé aos chamados grandes. Este escrito foi publicado no livro A Académica (Porto, Asa, 1995, p. 111), organizado pelo indefectível adepto da Briosa José Fernandes Fafe que o pediu expressamente ao amigo que aqui confessa o dilema em conciliar a sua filiação benfiquista e a sua condição de estudante coimbrão. Ler Eduardo Lourenço declara que, nestes assuntos futebolísticos, não tem dúvidas e assume o seu incondicional apoio às capas negras.
Um Inédito - Lembrança
Da nossa casa em Coimbra via-se o campo de Santa Cruz. Nos domingos em que jogava a Académica subíamos ao sótão para ter a ilusão de que seguíamos o desafio. Do campo só víamos um terço do terreno. Tínhamos de adivinhar o resto pelos clamores que saudavam alguma jogada mais feliz dos estudantes ou o delírio de um golo. Naquela época – nos anos 40 – ainda não era moda vibrar mais com os relatos dramatizados “à brasileira” do que com os ecos, mesmo equívocos, que nos chegavam do estádio. Ou dos longos momentos de silêncio da claque académica quando o Benfica e o Sporting metiam algum golo.
O futebol era então a única festa colectiva da cidade. Alimentava as conversas de café durante toda a semana. No Arcádia ou no Santa Cruz, aficionados calistos, doutores em futebol e na vida, ganhavam ou refaziam as partidas perdidas. A Académica ou como diziam os castiços, a Briosa, era então o mito da “malta” mais interessada em salvaguardar o seu privilégio aristocrático em relação aos futricas, que tinham no União os seus amores, que na disputa nacional. A turma estudantil tinha um lugar à parte no mundo do futebol, que ainda não era o de poderosos interesses financeiros e mediáticos como o de hoje. Tudo era inocente e provincial. A Académica era um pouco uma equipa de meninos prendados entre os grandes doutores do futebol nacional. Quando ganhava – como no ano da taça – o milagre era absoluto. A cidade vinha à Portagem recebê-los como se tivessem ganho a guerra de Tróia.
A tantos anos de distância é lícito ter alguma nostalgia de tanto amadorismo. Amadorismo sábio. Esses quase adolescentes – os José Maria, os António Bentes – deviam suprir pela sua ciência a maturidade, o profissionalismo das grandes equipas. Mas já então as “revelações” estudantis começavam a interessar aos clubes da capital. As trocas, as saídas eram vividas como traições ao clã académico. Um jogador da Académica não podia ser como os outros. Mesmo para quem não participava nessa mitologia candidamente elitista – era o meu caso, nesse e noutros capítulos, como o de uma parte da nossa geração – admitia mal ao entrever a identidade sui generis da Académica. Havia uma espécie de patriotismo estudantil, uma especificidade da turma negra que rejeitava os “mercenários”, duvidosamente académicos. O símbolo contava mais que o proveito. É dessa época de inocência que conservo saudades mais do que de fervores que nunca foram os da grande paixão. Até porque esse género de paixão não se escolhe. São elas que nos escolhem a nós. Quando cheguei a Coimbra há muitos anos que “era do Benfica...”. Nessa época quando o Benfica vinha a Coimbra o meu dilema “corneliano” era ficar “neutro”. Quer dizer, não ver o jogo. E a melhor maneira era não pôr os pés no campo de Santa Cruz e imaginar a paixão dos outros pelos ecos infiéis que me chegavam até à janela exígua da minha casa.

Vence, 1 de Janeiro de 1993






terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Por causa de uma malouine...

Ler Eduardo Lourenço gostaria que todos os seus visitantes passassem à condição de colaboradores do blog. De que modo? Por exemplo, enviando informações e documentos que, pelo seu indiscutível interesse, poderiam ser partilhados neste espaço que reúne amigos da obra e do pensamento do ensaísta. Mas também trazendo até aqui depoimentos, opiniões e críticas ou evocando episódios ou memórias relevantes que depois seriam, de acordo com os critérios de Ler Eduardo Lourenço, publicados ou não.




É sabido que Eduardo Prado Coelho foi um dos mais permanentes e atentos leitores de Eduardo Lourenço. Desde, pelo menos, Dezembro de 1967, altura em que publicou na revista Colóquio, uma atenta e pertinente recensão ao segundo volume de Heterodoxia, que Eduardo Prado Coelho não deixou de escrever sobre uma obra e um pensamento que sempre o fascinou também por aí «a fronteira entre o que lhe é visível e o que lhe é invisível se deslocar permanentemente» [Tudo o que não escrevi. Diário II, Porto, Asa, 1994, pp. 65-66]. A citação não é fortuita, pois em Tudo o que não escrevi, para além de tudo o resto - e esse resto é, com certeza, o mais importante... -, podemos encontrar vários relatos que têm como protagonista ... Eduardo Lourenço.
Eis um exemplo: em Saint-Malo, no mês de Maio de 1992, por ocasião do Festival do Livro de Aventura e Viagens, os dois amigos vivem o já clássico episódio da malouine. Com a devida vénia Ler Eduardo Lourenço cita duas partes dessa crónica de Eduardo Prado Coelho, ao mesmo tempo que confessa que o luminoso A poesia ensina a cair (Lisboa, IN-CM, 2010) foi um dos melhores livros que leu nos últimos tempos.
«Embalados pela cultura marítima que se vive aqui e em cada esquina se manifesta, passeámos ontem, o Eduardo Lourenço e eu, pela noite de Saint-Maio, até que perversamente o convenci que seria uma excelente ideia comprar uma dessas casquettes com uma âncora dourada sobre o tecido azul, as famosas malouines. Estudou o assunto, viu-se ao espelho, dei-lhe o bom exemplo do escritor Alvaro Mutis, que nunca larga a dele, o Eduardo olhou-se de frente e de perfil, recordou a cara do pai, mas acabou por se reconhecer neste novo rosto de homem do convés, de homem na amurada, de homem ao leme - e comprou. No bar para onde fomos, conversámos sobre piratas e corsários, e a nossa inevitável simpatia por esses heróis negativos que a literatura e o cinema ajudaram a mitificar. “A literatura justifica tudo”, diz-me, "e por isso destruiu tudo.” E acrescenta: “Até a própria literatura” [Tudo o que não escrevi, op. cit., p. 219]».
Infelizmente, nem toda a gente concordou com a ideia da malouine, como se veio a saber na manhã seguinte...
«O Eduardo Lourenço não parece ter sido bem sucedido com a história da casquette. Quando o deixei à porta do hotel, tinha-a posto, e estava um bocadinho diferente do costume, lá isso é verdade, mas muito bem, o que o terá levado a entrar no quarto com a casquette na cabeça, provocando na Annie, que já dormia, a surpresa de se confrontar com um aventureiro ousado e desconhecido. A experiência não se revelou convincente, e parece que fomos, os dois, alvos de algumas censuras. Assim falhou este meu projecto de darmos à actual literatura portuguesa “um ensaísta de viagens”, com a cabeça devidamente coberta para aguentar as vigílias ao leme e as noites de tempestade» [Ibid., p. 221].
Ler Eduardo Lourenço admite que, por causa de uma malouine, o desafio que faz aos seus visitantes é grande, mas mesmo assim aceita correr o risco...

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

«Uma ponte é sempre um milagre suspenso...»

Num tempo em que, cada vez mais, as pontes para o futuro parecem separar mais do que unir, vale com certeza a pena ler o texto de Eduardo Lourenço que aqui se apresenta pela primeira vez em português. Foi editado por João Nuno Alçada, a quem se deve também a nota explicativa. Ler Eduardo Lourenço ao editar este inédito não pode deixar de evocar George Simmel, e o seu famoso Brücke und Tür (ou seja, ponte e porta), clássico ensaio de 1909 que explora também a metáfora destes milagres suspensos.

Uma Ponte no Coração da Europa *

Durante meio século, uma Europa sem sono, dividida entre dois mundos, trocou no meio de uma das suas pontes, os homens da sombra que entre si partilhavam os mistérios da guerra e da paz. Hoje, essa ponte é apenas lembrança de cinema, com a elegante silhueta de Henry Fonda ao fundo. Passamos agora essas pontes vigiadas como turistas distraídos. Poucos europeus se lembram que, não há muito, só se atravessavam, com cautelas infinitas, como a personagem do “Passo suspenso da cegonha”.
Quer dizer, sabendo que uma ponte é sempre um milagre suspenso, não apenas entre duas margens mas entre duas histórias. E às vezes, no interior da História. O que une, pode separar. Cortar as pontes entre povos é sinal de guerra.
Desde Roma que o retalhado espaço europeu se cobriu de pontes. O diagrama das mil pontes da Europa é o espelho das suas vitórias e das suas derrotas interiores, sonhos de proximidade duradoira e de suspeita nunca desarmada. Proposição sempre diferida, hoje mais próxima, para rasurar, de uma vez por todas, as cisões e as cisuras que a História, mais do que a Natureza, criaram entre gente que vive, no mesmo espaço, lado a lado, há tantos séculos.
Como História, a Europa é uma longa, misteriosa, mas não menos realíssima guerra civil. A sua memória está cheia de cicatrizes. Seria vão e aberrante, além de perigoso, esquecê-lo. Mas mais aberrante ainda esperar que a paz que nos devemos, a Europa que a tanto custo estamos construindo, nos sejam oferecidas de mão beijada por quem não partilha a nossa memória, as nossas cicatrizes e que só nós mesmos podemos compreender por dentro e sarar por fora. A memória europeia comporta inumeráveis sulcos. O que se cavou entre a Alemanha e a França nem é o mais antigo nem o mais profundo. Em sentido próprio, sabendo que cicatriz pisamos, podemos atravessá-lo a pé. Em sentido simbólico convertê-lo em ponte onde o passo de todas as cegonhas da Europa vá e venha sem medo das suas sombras. Entre Kehl e Strasbourg, por exemplo. Onde a dor da Europa mais doeu é bom imaginar que dum simples olhar podemos anular as mortais distâncias de que só a ignorância, ou o medo do outro, nosso vizinho, fizeram uma vertigem, hoje sem sentido. Se não passar por essa ponte que para conjurar o destino já chamamos ponte da Europa, o nosso futuro de europeus não irá para parte alguma que mereça ser sonhada.

Vence, 1 de Outubro de 1998


* Texto escrito a pedido de Sorina Capp, do Instituto Europeu dos Itinerários Culturais (Luxembourg) para figurar, juntamente com outros textos de quarenta individualidades da cultura europeia, no que Michel Krieger (Strasbourg) chamou a Ponte da Europa entre Kehl e Strasbourg : «[…] construída nos anos 50, entre a França e a Alemanha […] para fortalecer o simbolismo da ponte e animar a longa travessia de uma margem para a outra, de um jardim para o outro, de um país para outro, quarenta e dois pequenos textos literários de individualidades da Comunidade Europeia, marcarão, em intervalos regulares, as guardas da ponte de um lado e do outro. […] Estas placas da sensibilidade europeia, impressas pela literatura, abrirão os campos de uma Europa em construção, mesmo no centro do Jardin des Deux Rives» [JNA].

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Três Cartas Inéditas de Jorge de Sena



Num óptimo site da Universidade Federal do Rio de Janeiro dedicado à obra do autor de Sinais de Fogo, e que tem um título muito semelhante ao do blog Ler Eduardo Lourenço (que confessa, quase envergonhado, esta inspiração subliminar de que só agora se dá conta), a Professora Gilda Santos publicou recentemente três cartas inéditas de Jorge de Sena enviadas a Eduardo Lourenço. Recorde-se que, há vinte anos, numa rigorosa e muita cuidada edição de Mécia de Sena, saiu o livro Eduardo Lourenço/Jorge de Sena. Correspondência, (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Col. Biblioteca de Autores Portugueses, 1991). Nesse livro, referia-se que havia pelo menos oito cartas escritas por Jorge de Sena que estavam perdidas. Estas três missivas encontravam-se, afinal, na posse de Eduardo Lourenço, mas apenas agora, no decurso do Inventário e Catalogação do Acervo de Eduardo Lourenço, projecto da responsabilidade científica de João Nuno Alçada (a quem se agradece a referência ao site) e realizado no âmbito do Centro Nacional de Cultura, foram por assim dizer descobertas.
Ler Eduardo Lourenço estreia-se com a remissão para o link que permite ao nosso visitante aceder a este material cuja importância os leitores de Eduardo Lourenço e, claro, de Jorge de Sena não deixarão de reconhecer: http://www.letras.ufrj.br/lerjorgedesena/port/antologia/escritos_pessoais/texto.php?id=136
Por agora, apenas um brevíssimo comentário. A publicação destas três cartas permite, desde logo, reconstruir um diálogo que estava truncado e que, doravante, passa a fazer bastante mais sentido.Dois exemplos. Na carta com data de 3 de Maio de 1953, Jorge de Sena insere um poema com a seguinte indicação «transcrevo um dos meus poemas recentes – ele lhe dirá mais que esta carta que já vai comprida».De que poema se trata? Em nota explicativa à resposta (publicada em Eduardo Lourenço/Jorge de Sena. Correspondência) que Eduardo Lourenço redige à carta com poema dentro, Mécia de Sena arrisca uma solução para o enigma que, sabemo-lo agora, não era a correcta. Escreveu Mécia de Sena: «É provável que o poema aqui referido seja: Quanto eu disser..., (...) publicado em Fidelidade». Afinal, trata-se do poema Epitáfio, igualmente aparecido em Fidelidade (Lisboa, Moraes, 1958) e, de acordo com o que se pode ler no livro, escrito em 8 de Janeiro de 1953 .




Na segunda carta agora revelada, Jorge de Sena pede ao amigo o seguinte: «Não deixe de ler os poemas do grego Cavafy que traduzi do inglês e publiquei no “Comércio”, no passado dia 9. Não me lembro se chegámos a falar nisto». Talvez seja interessante evocar aqui o texto que Eduardo Lourenço publicará, dezasseis anos volvidos, na página literária de um jornal conimbricense: “Ler Cavafy”, Suplemento Perspectivas 70 de O Diário de Coimbra, nº 5, 20/VII/1970, p. 6.
Isto não significa que a resposta ao pedido tenha tardado, até porque Eduardo Lourenço escreve sobre o livro 90 e Mais Quatro Poemas de Constantino Cavafy, tradução do inglês que Jorge de Sena publica em 1970, enviando um exemplar ao seu correspondente em Março desse ano com a seguinte dedicatória: «Ao Eduardo Lourenço, este poeta que levei 17 anos a traduzir e a ver publicado - e que é um exemplo de como o simbolismo se transformou em modernismo. Com o grande abraço do Jorge de Sena, Madison-Março-1970» (Eduardo Lourenço/Jorge de Sena. Correspondência, op. cit., p. 22).
O pedido talvez signifique uma outra coisa. Que o trabalho literário de Jorge de Sena, designadamente como poeta e tradutor de poesia, pode também ser visto (entre muitas outras dimensões de uma obra poética notável, é evidente) como uma espécie de carta escrita ao seu amigo Eduardo Lourenço.