quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Um pr(o)émio, algumas (des)leituras e uma dedicatória

Ler Eduardo Lourenço atribui a Pessoa Revisitado. Leitura Estruturante do Drama em Gente [Porto, Editorial Inova, 1974] um lugar especial na obra de que é leitor. Nisso, como em muitas outras coisas – o que não é o mesmo que dizer em todas –, não discorda do ensaísta. O que talvez não seja necessariamente uma vantagem. Gostaria Ler Eduardo Lourenço de ser capaz de aplicar com mais assiduidade uma espécie de princípio metodológico que encontrou no texto que abre a reedição que o livro conhece sete anos depois e que levou o título “Singular pr(o)émio”: «leio sempre com atenção redobrada os autores com que não concordo de todo» [Fernando Pessoa Revisitado. Leitura Estruturante do Drama em Gente, Porto, Moraes, 1981, 2ª ed., p. 12. Registe-se a ligeiríssima alteração no nome do livro que voltará à forma inicial na 3ª edição, já de 2000]. É mais fácil ler aquilo em que, de algum modo, nos reconhecemos. E, no entanto, a experiência inversa pode tornar-se bem mais enriquecedora…
Mas do que se tratava agora era de (re)ler Pessoa Revisitado. Mais precisamente o referido proémio que começa por assinalar uma de (pelo menos) duas histórias que fizeram deste um livro infeliz, pois «em princípio, os livros felizes não têm história» [p.11]. Os livros felizes lêem-se, os outros deslêem-se, embora a palavra desleitura, tantas vezes escrita por Eduardo Lourenço, leve dentro de si o acto de quem lê. Caso fosse essa uma questão de escolha, poder-se-ia dizer que Pessoa Revisitado não escolheu uma boa altura para chegar a este mundo. No Portugal de 1974, outras tarefas e outras leituras eram, necessariamente, mais urgentes. Daí um certo pessoano silêncio numa época em que, ruidosa e por vezes estridentemente revolucionária, se fazia ouvir a liberdade ou, como reconhece o autor, «Pessoa Revisitado ficou então eclipsado pelo merecido sucesso de um desses textos que são ou fazem História antes de ser escrita. Com esse sacrifício me regozijei» [Ibid].
No entanto, três anos volvidos, Eduardo Lourenço é surpreendido ao receber uma carta que anuncia uma «vaga recompensa como autor de A Pessoa Revisitada» [Ibid]. Estranho prémio aquele que se dá a um livro que, no mesmo lance, é rebaptizado. «O lapso de tempo, o júri entretanto evaporado (arrependido?), a peripécia revolucionária explicam sem dúvida a deliciosa metamorfose de um título. Espero que Pessoa tenha achado justa a punição que todos os críticos merecem só por sê-lo. Eu achei-lhe graça, naturalmente». Terá sido esta uma das primeiras (des)leituras que o ensaio-romance (a expressão é do próprio Eduardo Lourenço) mereceu. Outras se lhe seguiram, mas claro que não é esta a ocasião de retraçar esses percursos mais ou menos polémicos, todos eles decerto interessantes.



A de João Gaspar Simões, cuja interpretação psicanalítica (mas o adjectivo tem aqui – como tantas vezes acontece, aliás – um significado muito pessoal) do poeta da Ode Marítima havia sido objecto de cerrada crítica em Pessoa Revisitado, não é a menos importante, com toda a certeza. E o singular proémio também à história de tal (des)leitura não deixa de se referir. Vale a pena por isso a releitura. É que talvez a história dos livros (uns mais felizes do que outros...) seja também a de uma sucessão de leituras e desleituras que continuamente se (des)fazem. Ler Eduardo Lourenço descobriu há alguns anos na Biblioteca Municpal da Figueira da Foz, onde se guarda parte do espólio daquele que foi, durante décadas, a personificação do Crítico das Letras portuguesas, um exemplar da segunda edição de Pessoa Revisitado, com a dedicatória que a seguir se reproduz: «A João Gaspar Simões que com tanta benevolência acolheu estas páginas (ou este “romance”), com a homenagem do seu velho leitor e admirador, Eduardo Lourenço. Vence, 23 de Julho de 1981». Ler Eduardo Lourenço resiste sem esforço à tentação de extrair das linhas que se seguem qualquer explicação psicanalítica, limitando-se a registar que também as (des)leituras podem ser benevolentes, mesmo ou sobretudo quando não se concorda de todo com elas. Nessa altura apenas há que lhe dedicar uma atenção redobrada. É o que Pessoa Revisitado faz à exegese pessoana de Gaspar Simões e é também, Ler Eduardo Lourenço seria incapaz de defender outra coisa, o que o Crítico faz ao ensaio-romance. Com mais ou com menos benevolência. [Cf. “Eduardo Lourenço Pessoa Revisitado, Leitura Estruturante do Drama em Gente”, Diário de Notícias, Lisboa, 27/VI/1974].