terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Por causa de uma malouine...

Ler Eduardo Lourenço gostaria que todos os seus visitantes passassem à condição de colaboradores do blog. De que modo? Por exemplo, enviando informações e documentos que, pelo seu indiscutível interesse, poderiam ser partilhados neste espaço que reúne amigos da obra e do pensamento do ensaísta. Mas também trazendo até aqui depoimentos, opiniões e críticas ou evocando episódios ou memórias relevantes que depois seriam, de acordo com os critérios de Ler Eduardo Lourenço, publicados ou não.




É sabido que Eduardo Prado Coelho foi um dos mais permanentes e atentos leitores de Eduardo Lourenço. Desde, pelo menos, Dezembro de 1967, altura em que publicou na revista Colóquio, uma atenta e pertinente recensão ao segundo volume de Heterodoxia, que Eduardo Prado Coelho não deixou de escrever sobre uma obra e um pensamento que sempre o fascinou também por aí «a fronteira entre o que lhe é visível e o que lhe é invisível se deslocar permanentemente» [Tudo o que não escrevi. Diário II, Porto, Asa, 1994, pp. 65-66]. A citação não é fortuita, pois em Tudo o que não escrevi, para além de tudo o resto - e esse resto é, com certeza, o mais importante... -, podemos encontrar vários relatos que têm como protagonista ... Eduardo Lourenço.
Eis um exemplo: em Saint-Malo, no mês de Maio de 1992, por ocasião do Festival do Livro de Aventura e Viagens, os dois amigos vivem o já clássico episódio da malouine. Com a devida vénia Ler Eduardo Lourenço cita duas partes dessa crónica de Eduardo Prado Coelho, ao mesmo tempo que confessa que o luminoso A poesia ensina a cair (Lisboa, IN-CM, 2010) foi um dos melhores livros que leu nos últimos tempos.
«Embalados pela cultura marítima que se vive aqui e em cada esquina se manifesta, passeámos ontem, o Eduardo Lourenço e eu, pela noite de Saint-Maio, até que perversamente o convenci que seria uma excelente ideia comprar uma dessas casquettes com uma âncora dourada sobre o tecido azul, as famosas malouines. Estudou o assunto, viu-se ao espelho, dei-lhe o bom exemplo do escritor Alvaro Mutis, que nunca larga a dele, o Eduardo olhou-se de frente e de perfil, recordou a cara do pai, mas acabou por se reconhecer neste novo rosto de homem do convés, de homem na amurada, de homem ao leme - e comprou. No bar para onde fomos, conversámos sobre piratas e corsários, e a nossa inevitável simpatia por esses heróis negativos que a literatura e o cinema ajudaram a mitificar. “A literatura justifica tudo”, diz-me, "e por isso destruiu tudo.” E acrescenta: “Até a própria literatura” [Tudo o que não escrevi, op. cit., p. 219]».
Infelizmente, nem toda a gente concordou com a ideia da malouine, como se veio a saber na manhã seguinte...
«O Eduardo Lourenço não parece ter sido bem sucedido com a história da casquette. Quando o deixei à porta do hotel, tinha-a posto, e estava um bocadinho diferente do costume, lá isso é verdade, mas muito bem, o que o terá levado a entrar no quarto com a casquette na cabeça, provocando na Annie, que já dormia, a surpresa de se confrontar com um aventureiro ousado e desconhecido. A experiência não se revelou convincente, e parece que fomos, os dois, alvos de algumas censuras. Assim falhou este meu projecto de darmos à actual literatura portuguesa “um ensaísta de viagens”, com a cabeça devidamente coberta para aguentar as vigílias ao leme e as noites de tempestade» [Ibid., p. 221].
Ler Eduardo Lourenço admite que, por causa de uma malouine, o desafio que faz aos seus visitantes é grande, mas mesmo assim aceita correr o risco...