Numa semana em que a Associação Académica de Coimbra recebe o Benfica em jogo a contar para o Campeonato Nacional de Futebol, Ler Eduardo Lourenço recupera um texto de memórias do ensaísta que evoca os áureos anos Quarenta em que a Briosa, equipa composta exclusivamente por estudantes da Universidade, batia o pé aos chamados grandes. Este escrito foi publicado no livro A Académica (Porto, Asa, 1995, p. 111), organizado pelo indefectível adepto da Briosa José Fernandes Fafe que o pediu expressamente ao amigo que aqui confessa o dilema em conciliar a sua filiação benfiquista e a sua condição de estudante coimbrão. Ler Eduardo Lourenço declara que, nestes assuntos futebolísticos, não tem dúvidas e assume o seu incondicional apoio às capas negras.
Um Inédito - Lembrança
Da nossa casa em Coimbra via-se o campo de Santa Cruz. Nos domingos em que jogava a Académica subíamos ao sótão para ter a ilusão de que seguíamos o desafio. Do campo só víamos um terço do terreno. Tínhamos de adivinhar o resto pelos clamores que saudavam alguma jogada mais feliz dos estudantes ou o delírio de um golo. Naquela época – nos anos 40 – ainda não era moda vibrar mais com os relatos dramatizados “à brasileira” do que com os ecos, mesmo equívocos, que nos chegavam do estádio. Ou dos longos momentos de silêncio da claque académica quando o Benfica e o Sporting metiam algum golo.
O futebol era então a única festa colectiva da cidade. Alimentava as conversas de café durante toda a semana. No Arcádia ou no Santa Cruz, aficionados calistos, doutores em futebol e na vida, ganhavam ou refaziam as partidas perdidas. A Académica ou como diziam os castiços, a Briosa, era então o mito da “malta” mais interessada em salvaguardar o seu privilégio aristocrático em relação aos futricas, que tinham no União os seus amores, que na disputa nacional. A turma estudantil tinha um lugar à parte no mundo do futebol, que ainda não era o de poderosos interesses financeiros e mediáticos como o de hoje. Tudo era inocente e provincial. A Académica era um pouco uma equipa de meninos prendados entre os grandes doutores do futebol nacional. Quando ganhava – como no ano da taça – o milagre era absoluto. A cidade vinha à Portagem recebê-los como se tivessem ganho a guerra de Tróia.
A tantos anos de distância é lícito ter alguma nostalgia de tanto amadorismo. Amadorismo sábio. Esses quase adolescentes – os José Maria, os António Bentes – deviam suprir pela sua ciência a maturidade, o profissionalismo das grandes equipas. Mas já então as “revelações” estudantis começavam a interessar aos clubes da capital. As trocas, as saídas eram vividas como traições ao clã académico. Um jogador da Académica não podia ser como os outros. Mesmo para quem não participava nessa mitologia candidamente elitista – era o meu caso, nesse e noutros capítulos, como o de uma parte da nossa geração – admitia mal ao entrever a identidade sui generis da Académica. Havia uma espécie de patriotismo estudantil, uma especificidade da turma negra que rejeitava os “mercenários”, duvidosamente académicos. O símbolo contava mais que o proveito. É dessa época de inocência que conservo saudades mais do que de fervores que nunca foram os da grande paixão. Até porque esse género de paixão não se escolhe. São elas que nos escolhem a nós. Quando cheguei a Coimbra há muitos anos que “era do Benfica...”. Nessa época quando o Benfica vinha a Coimbra o meu dilema “corneliano” era ficar “neutro”. Quer dizer, não ver o jogo. E a melhor maneira era não pôr os pés no campo de Santa Cruz e imaginar a paixão dos outros pelos ecos infiéis que me chegavam até à janela exígua da minha casa.
Vence, 1 de Janeiro de 1993
Da nossa casa em Coimbra via-se o campo de Santa Cruz. Nos domingos em que jogava a Académica subíamos ao sótão para ter a ilusão de que seguíamos o desafio. Do campo só víamos um terço do terreno. Tínhamos de adivinhar o resto pelos clamores que saudavam alguma jogada mais feliz dos estudantes ou o delírio de um golo. Naquela época – nos anos 40 – ainda não era moda vibrar mais com os relatos dramatizados “à brasileira” do que com os ecos, mesmo equívocos, que nos chegavam do estádio. Ou dos longos momentos de silêncio da claque académica quando o Benfica e o Sporting metiam algum golo.
O futebol era então a única festa colectiva da cidade. Alimentava as conversas de café durante toda a semana. No Arcádia ou no Santa Cruz, aficionados calistos, doutores em futebol e na vida, ganhavam ou refaziam as partidas perdidas. A Académica ou como diziam os castiços, a Briosa, era então o mito da “malta” mais interessada em salvaguardar o seu privilégio aristocrático em relação aos futricas, que tinham no União os seus amores, que na disputa nacional. A turma estudantil tinha um lugar à parte no mundo do futebol, que ainda não era o de poderosos interesses financeiros e mediáticos como o de hoje. Tudo era inocente e provincial. A Académica era um pouco uma equipa de meninos prendados entre os grandes doutores do futebol nacional. Quando ganhava – como no ano da taça – o milagre era absoluto. A cidade vinha à Portagem recebê-los como se tivessem ganho a guerra de Tróia.
A tantos anos de distância é lícito ter alguma nostalgia de tanto amadorismo. Amadorismo sábio. Esses quase adolescentes – os José Maria, os António Bentes – deviam suprir pela sua ciência a maturidade, o profissionalismo das grandes equipas. Mas já então as “revelações” estudantis começavam a interessar aos clubes da capital. As trocas, as saídas eram vividas como traições ao clã académico. Um jogador da Académica não podia ser como os outros. Mesmo para quem não participava nessa mitologia candidamente elitista – era o meu caso, nesse e noutros capítulos, como o de uma parte da nossa geração – admitia mal ao entrever a identidade sui generis da Académica. Havia uma espécie de patriotismo estudantil, uma especificidade da turma negra que rejeitava os “mercenários”, duvidosamente académicos. O símbolo contava mais que o proveito. É dessa época de inocência que conservo saudades mais do que de fervores que nunca foram os da grande paixão. Até porque esse género de paixão não se escolhe. São elas que nos escolhem a nós. Quando cheguei a Coimbra há muitos anos que “era do Benfica...”. Nessa época quando o Benfica vinha a Coimbra o meu dilema “corneliano” era ficar “neutro”. Quer dizer, não ver o jogo. E a melhor maneira era não pôr os pés no campo de Santa Cruz e imaginar a paixão dos outros pelos ecos infiéis que me chegavam até à janela exígua da minha casa.
Vence, 1 de Janeiro de 1993