Num tempo em que, cada vez mais, as pontes para o futuro parecem separar mais do que unir, vale com certeza a pena ler o texto de Eduardo Lourenço que aqui se apresenta pela primeira vez em português. Foi editado por João Nuno Alçada, a quem se deve também a nota explicativa. Ler Eduardo Lourenço ao editar este inédito não pode deixar de evocar George Simmel, e o seu famoso Brücke und Tür (ou seja, ponte e porta), clássico ensaio de 1909 que explora também a metáfora destes milagres suspensos.
Uma Ponte no Coração da Europa *
Durante meio século, uma Europa sem sono, dividida entre dois mundos, trocou no meio de uma das suas pontes, os homens da sombra que entre si partilhavam os mistérios da guerra e da paz. Hoje, essa ponte é apenas lembrança de cinema, com a elegante silhueta de Henry Fonda ao fundo. Passamos agora essas pontes vigiadas como turistas distraídos. Poucos europeus se lembram que, não há muito, só se atravessavam, com cautelas infinitas, como a personagem do “Passo suspenso da cegonha”.
Quer dizer, sabendo que uma ponte é sempre um milagre suspenso, não apenas entre duas margens mas entre duas histórias. E às vezes, no interior da História. O que une, pode separar. Cortar as pontes entre povos é sinal de guerra.
Desde Roma que o retalhado espaço europeu se cobriu de pontes. O diagrama das mil pontes da Europa é o espelho das suas vitórias e das suas derrotas interiores, sonhos de proximidade duradoira e de suspeita nunca desarmada. Proposição sempre diferida, hoje mais próxima, para rasurar, de uma vez por todas, as cisões e as cisuras que a História, mais do que a Natureza, criaram entre gente que vive, no mesmo espaço, lado a lado, há tantos séculos.
Como História, a Europa é uma longa, misteriosa, mas não menos realíssima guerra civil. A sua memória está cheia de cicatrizes. Seria vão e aberrante, além de perigoso, esquecê-lo. Mas mais aberrante ainda esperar que a paz que nos devemos, a Europa que a tanto custo estamos construindo, nos sejam oferecidas de mão beijada por quem não partilha a nossa memória, as nossas cicatrizes e que só nós mesmos podemos compreender por dentro e sarar por fora. A memória europeia comporta inumeráveis sulcos. O que se cavou entre a Alemanha e a França nem é o mais antigo nem o mais profundo. Em sentido próprio, sabendo que cicatriz pisamos, podemos atravessá-lo a pé. Em sentido simbólico convertê-lo em ponte onde o passo de todas as cegonhas da Europa vá e venha sem medo das suas sombras. Entre Kehl e Strasbourg, por exemplo. Onde a dor da Europa mais doeu é bom imaginar que dum simples olhar podemos anular as mortais distâncias de que só a ignorância, ou o medo do outro, nosso vizinho, fizeram uma vertigem, hoje sem sentido. Se não passar por essa ponte que para conjurar o destino já chamamos ponte da Europa, o nosso futuro de europeus não irá para parte alguma que mereça ser sonhada.
Uma Ponte no Coração da Europa *
Durante meio século, uma Europa sem sono, dividida entre dois mundos, trocou no meio de uma das suas pontes, os homens da sombra que entre si partilhavam os mistérios da guerra e da paz. Hoje, essa ponte é apenas lembrança de cinema, com a elegante silhueta de Henry Fonda ao fundo. Passamos agora essas pontes vigiadas como turistas distraídos. Poucos europeus se lembram que, não há muito, só se atravessavam, com cautelas infinitas, como a personagem do “Passo suspenso da cegonha”.
Quer dizer, sabendo que uma ponte é sempre um milagre suspenso, não apenas entre duas margens mas entre duas histórias. E às vezes, no interior da História. O que une, pode separar. Cortar as pontes entre povos é sinal de guerra.
Desde Roma que o retalhado espaço europeu se cobriu de pontes. O diagrama das mil pontes da Europa é o espelho das suas vitórias e das suas derrotas interiores, sonhos de proximidade duradoira e de suspeita nunca desarmada. Proposição sempre diferida, hoje mais próxima, para rasurar, de uma vez por todas, as cisões e as cisuras que a História, mais do que a Natureza, criaram entre gente que vive, no mesmo espaço, lado a lado, há tantos séculos.
Como História, a Europa é uma longa, misteriosa, mas não menos realíssima guerra civil. A sua memória está cheia de cicatrizes. Seria vão e aberrante, além de perigoso, esquecê-lo. Mas mais aberrante ainda esperar que a paz que nos devemos, a Europa que a tanto custo estamos construindo, nos sejam oferecidas de mão beijada por quem não partilha a nossa memória, as nossas cicatrizes e que só nós mesmos podemos compreender por dentro e sarar por fora. A memória europeia comporta inumeráveis sulcos. O que se cavou entre a Alemanha e a França nem é o mais antigo nem o mais profundo. Em sentido próprio, sabendo que cicatriz pisamos, podemos atravessá-lo a pé. Em sentido simbólico convertê-lo em ponte onde o passo de todas as cegonhas da Europa vá e venha sem medo das suas sombras. Entre Kehl e Strasbourg, por exemplo. Onde a dor da Europa mais doeu é bom imaginar que dum simples olhar podemos anular as mortais distâncias de que só a ignorância, ou o medo do outro, nosso vizinho, fizeram uma vertigem, hoje sem sentido. Se não passar por essa ponte que para conjurar o destino já chamamos ponte da Europa, o nosso futuro de europeus não irá para parte alguma que mereça ser sonhada.
Vence, 1 de Outubro de 1998
* Texto escrito a pedido de Sorina Capp, do Instituto Europeu dos Itinerários Culturais (Luxembourg) para figurar, juntamente com outros textos de quarenta individualidades da cultura europeia, no que Michel Krieger (Strasbourg) chamou a Ponte da Europa entre Kehl e Strasbourg : «[…] construída nos anos 50, entre a França e a Alemanha […] para fortalecer o simbolismo da ponte e animar a longa travessia de uma margem para a outra, de um jardim para o outro, de um país para outro, quarenta e dois pequenos textos literários de individualidades da Comunidade Europeia, marcarão, em intervalos regulares, as guardas da ponte de um lado e do outro. […] Estas placas da sensibilidade europeia, impressas pela literatura, abrirão os campos de uma Europa em construção, mesmo no centro do Jardin des Deux Rives» [JNA].