É com certeza um dos prémios que se reveste de maior importância simbólica para Eduardo Lourenço. De facto, se o Prémio Camões (1996) , o galardão mais importante de toda a literatura em língua portuguesa, o Prémio Vergílio Ferreira (Universidade de Évora, 2001) ou até o Prémio António Sérgio no já longínquo ano de 1992 constituiram distinções que muito sensibilizaram o ensaísta, não restam dúvidas de que Fernando Pessoa é o autor com quem Eduardo Lourenço tem mantido desde há largos anos (registe-se que, em Heterodoxia I, publicada em 1949, há já uma referência explícita ao poeta de Ode Marítima) um permanente e inacabado diálogo. De Pessoa terá Eduardo Lourenço retirado múltiplas lições, a menor das quais não será certamente a ideia de o literário nunca é apenas literário.
Ler Eduardo Lourenço não poderia deixar passar em claro este feliz acontecimento e por isso transcreve em seguida um excerto de uma entrevista realizada há largos anos pela jornalista Inês Pedrosa e publicada no Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 6/XII/1986, pp. 2-6. Para além do interesse das declarações do ensaísta sobre Fernando Pessoa, Ler Eduardo Lourenço recorda que Inês Pedrosa é, hoje, a directora da Casa Fernando Pessoa em Lisboa.
Ler Eduardo Lourenço não poderia deixar passar em claro este feliz acontecimento e por isso transcreve em seguida um excerto de uma entrevista realizada há largos anos pela jornalista Inês Pedrosa e publicada no Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 6/XII/1986, pp. 2-6. Para além do interesse das declarações do ensaísta sobre Fernando Pessoa, Ler Eduardo Lourenço recorda que Inês Pedrosa é, hoje, a directora da Casa Fernando Pessoa em Lisboa.
Mário Soares e Francisco Pinto Balsemão membros do Júri do Prémio Pessoa
(foto Expresso)
«Jornal de Letras – Eduardo Prado Coelho escreveu que Fernando, Rei da Nossa Baviera se pode, e deve, ler como um romance, afirmação que eu subscrevo inteiramente. Concorda?
Eduardo Lourenço – Bom, cada um faz os romances que pode... Naturalmente, o que eu queria fazer era um romance, um verdadeiro romance. De maneira que aquilo que há em mim de imaginativo, ou de imaginante, possivelmente se transfere para essa esfera de ordem crítica, em que os autores servem ao mesmo tempo de objecto de estudo no sentido tradicional e de objecto de projecção. Lembro-me de o meu amigo Carlos de Oliveira me dizer, a propósito do Pessoa Revisitado, que não sabia se aquilo correspondia realmente ao Fernando Pessoa, mas que aquilo tinha muito a ver comigo. Quer isto dizer que, já no Pessoa Revisitado, alguém que me conhecia tão bem como o Carlos de Oliveira pensava que era o meu romance.
(...) A mitologia de Fernando Pessoa comporta dois aspectos diferentes. Fernando Pessoa torna-se emblemático numa perspectiva nacionalista clássica, mesmo se isto corresponde a uma leitura não muito certa de Mensagem. Mas, em todo o caso, há um suporte para que Pessoa se tenha tornado um emblema de um novo sonho de Portugal, numa altura em que Portugal não tem perspectivas realistas de instituir uma imagem positiva de próprio que seja grata ao sonho português de ter sido um grande país. Portanto, a Mensagem vai ser lida como uma espécie de Lusíadas do século vinte, quando, em última análise, ela é anti-Lusíadas.
P. – Anti-Lusíadas em que sentido?
R. – Ela é anti-Lusíadas porque Os Lusíadas são um poema escrito sobre uma acção real, a exaltação de um facto real de importância nacional. E a Mensagem é um poema puramente onírico. Onírico, antes de mais em relação ao passado, porque todos os heróis ou figuras emblemáticas de Mensagem são símbolos de maneiras de estar no mundo e de representar o ser português ideal, mais do que personagens que agiram na História desta ou daquela maneira. Por outro lado, o livro termina com a constatação de que o presente de Portugal é um presente de Hora Zero, a partir do qual tem que haver uma espécie de renversement. Portanto, não tem muito a ver com Os Lusíadas. Só tem a ver na medida em que, na ordem do imaginário de Fernando Pessoa, Mensagem se destina a substituir Os Lusíadas, porque Os Lusíadas já não funcionam para o Portugal que existe. Portugal agora tem mais Sonho que Realidade: o poema da realidade está cumprido, já está no passado. No espírito de Fernando Pessoa, Os Lusíadas são definitivamente reenviados para o Passado com Mensagem – por isso mesmo ele se quer Super-Camões, o que quer dizer que ele integra a obra de Camões e a supera. A esse título, a pouco e pouco, foi sendo tomado à letra, e o Fernando Pessoa tornou-se o novo Camões.
P. – Mas, no fundo, não procura Fernando Pessoa uma Ilha dos Amores, como n’ Os Lusíadas?
R. – Dos Amores não direi, porque em matéria de amores o Fernando Pessoa não tinha exactamente o mesmo tipo de perspectiva de Camões. Aparentemente, pelo menos, porque o Jorge de Sena insinua que sim. Mas a habitual mitologia amorosa e erótica construída em volta de Camões é a do homem das diversas chamas, diversos amores, entendendo-se por esses amores, em princípio, amores femininos. Ora, Fernando Pessoa não parece ter ardido em nenhuma chama de amor, mas na chama do Não-Amor. O que há menos em Fernando Pessoa é a mulher. Portanto, é uma experiência extremamente dolorosa, mais dolorosa do que a da paixão de amor, correspondida ou não-correspondida.
P. – Terá Pessoa sido de facto, como diz Eduardo Lourenço, um abandonado de amor? E porque não um voluntário auto-excluído por demasiado consciente?
R. – Pouco me importam quais tenham sido as razões de ordem genealógica, psíquica ou psicanalítica. Essa ferida está inscrita nos poemas. As causas podem-se discutir indefinidamente. Não há dúvida de que a interpretação que ele, Fernando Pessoa, dá, sobretudo agora através das páginas mais precisas do Livro do Desassossego, é a dessa orfandade real, mítica. Mítica, porque a mãe existiu até 1925. A mãe não o parece ter desamado no sentido literal do termo. Mas ele é que viveu essa não-presença efectiva, importante, da sua adolescência. Pessoa está em Portugal e a mãe está fora; ou então foi o segundo casamento dela que o marcou, como João Gaspar Simões foca. De qualquer modo, essa ideia de se representar a si próprio, num dos seus semi-heterónimos, como alguém a quem a mãe morreu, quando a mãe dele está viva, significa que ele se autopsicanalisou antes da psicanálise existir. Portanto, a realidade erótica de Fernando Pessoa não me parece ser do mesmo estilo da que conhecemos para o Camões, embora nós não conheçamos muita coisa do Camões, afinal de contas não conhecemos nada. Não sabemos se essa espécie de don juanismo de Camões não será do mesmo estilo a que eu chamo o Não-Amor do Fernando Pessoa... Afinal, trata-se de uma espécie de impossibilidade permanente de Camões de aderir a um amor real. Inventaram-se musas diversas para justificar esses poemas. Mas pode ser simplesmente um trabalho onírico hiperpetrarquiano, sem suporte concreto.
P. – E já estamos a entrar na irresolúvel questão das sinceridades versus autenticidade...
R – ... que é uma questão que não tem verdadeiramente sentido na ordem da escrita, do ficcional e do poético. É uma questão de nível psicológico ou psíquico. O que importa é o texto.
P. – O professor Eduardo Lourenço repete isso várias vezes ao longo deste livro, mas depois diz assim, taxativamente: «O autor da Tabacaria e dos fragmentos de Ode à Noite não foi especialmente vocacionado para o que chamamos felicidade.»
R. – Nós aprendemos isso lendo-o. Mas o facto de Pessoa não ser vocacionado para a felicidade também não é uma originalidade em absoluto. Praticamente toda a nossa lírica é uma glosa do desejo insatisfeito. Possivelmente, toda a lírica o é. Por conseguinte, essa insatisfação não corresponde àquilo que de uma maneira geral se chama um destino vocacionado para uma certa normalidade, uma certa felicidade. Agora se me pergunta o que é ser-se vocacionado para a felicidade... Bom... Certas pessoas vivem a sua relação com a existência, com os outros, com o mundo, de uma maneira mais harmoniosa do que outros. Pertencem a essa espécie de animais felizes que dizem «qu’ils sont bien dans leur peau». Há o caso de um político proeminente que diz «qu’il se sent bien dans sa peau»... E afinal é isso o normal, no fundo toda a gente nasce para estar bem dans sa peau. O que deveria ser considerado anormal é que as pessoas não se sintam bem naquilo que são. E aqueles que ressentem essa fractura interna, com mais profundidade são os poetas, os criadores. Sobretudo os poetas da Modernidade. Porque houve outras épocas em que os criadores não parecem ter tido necessidade de se sentirem particularmente infelizes para serem criativos. Não temos a ideia de que Bach tivesse tido uma existência particularmente infeliz, mas o Bach pertence à idade clássica ou neoclássica da Modernidade. Depois vem essa idade a que podemos chamar Idade de Depressão, em todo o sentido do termo – depressão histórica, depressão por uma contradição profunda entre o tipo de existência que o homem moderno se fabricou, aquilo a que chamámos Romantismo. Os românticos sentem a obrigação de ser infelizes, mesmo que sejam extremamente felizes.
P. – Nesse sentido, Fernando Pessoa é o puro romântico.
R. – Ele próprio o diz. Se ele não fosse romântico, o que é que nós seríamos? Pessoa é, possivelmente com o Pascoaes, o nosso maior romântico.
P. – E simbolista, e só aparentemente modernista.
R. – A minha relação com Fernando Pessoa tem já muitos anos e muita reflexão. E, embora isso esteja anunciado nos textos mais antigos como uma hipótese, o que cada vez me parece mais relevante é o facto de que nós nos enganámos todos; na leitura, fizemos da excepção a anormalidade do caso Fernando Pessoa. E a excepção é a sua estridência modernista, que foi um momento extremamente breve na sua produção, após o qual ele regressou imediatamente aos seus antigos demónios. E o seu demónio é o demónio simbolista. É uma visão da existência sobre o fundo do nevoeiro, da ausência, do vago. O que não é vago é a escrita dele, mesmo quando ele é simbolista. O Marinheiro, mesmo nas suas passagens mais ultra-simbolistas, é de uma luminosidade que não tem comparação nenhuma na literatura portuguesa, e poucas em qualquer literatura. E o que Pessoa está ali a glosar é a Ausência da Ausência da Ausência. E essa Ausência é presente no texto, de uma maneira muito forte.
P. – Assim como os heterónimos seriam a glosa de uma heteronomia mais funda. E a originalidade de Pessoa estaria…
R. – ...no facto de ele ser um carrefour, um cruzamento das várias possibilidades de se ser moderno, desde os fins do século dezanove aos princípios do século vinte. Fernando Pessoa é modernista no sentido mais profundo da consciência daquilo que é a ausência da Modernidade, ou seja, da morte de Deus, da perda de um Sentido para uma História que até então tinha Sentido. A própria criação do conceito de História em termos modernos visa recuperar um Sentido que tinha sido perdido em termos teleológicos. Ao mesmo tempo, Fernando Pessoa é profundamente antimodernista a todos os níveis. Não se tem notado muito, mas a aprendizagem de Fernando Pessoa foi extremamente clássica, como clássica era a poesia inglesa de que ele mais gostava – incluindo os românticos, que ao nível da escrita eram perfeitamente clássicos, fascinados pela Grécia. Portanto, no imaginário de Pessoa, a Idade de Ouro da Humanidade é a Grécia; não a Grécia de Nietzsche, mas a Grécia de Winckelmann, a Grécia de Goethe. O Modernismo é o facto de ele querer apanhar todos os comboios, de não ser ninguém e por isso estar disponível...
P. – Só marginalmente o seu interesse por Pessoa parece literário...
R. – O literário é que para mim nunca foi apenas literário. Foi isso o que me começou a separar, a nível teórico, da perspectiva crítica clássica da geração anterior à minha, que era a da Presença. Fundamentalmente, Régio por um lado. Simões do outro, porque sempre me considerei mais próximo do Casais Monteiro, naturalmente por ambos termos sido alunos de Filosofia. Para mim, a literatura é a expressão de alguma coisa mais, que no fundo não tem nome.
P. – Se bem entendo, o seu entusiasmo pelo que de indizível há na Literatura, partiu da constatação de que a Filosofia conduz a categorias, absolutos, enquanto que na ficção pura se recupera um sentido que discurso algum com pretensão à objectividade pode alcançar.
R. – Em última análise, eu também não faria uma distinção tão tranchante entre aquilo de que a Filosofia é a manifestação exterior e a Poesia. As duas têm a mesma fonte, a resposta é que é diferente.
Como diz Platão, o que determina o desejo de filosofar é o espanto diante da realidade. Esse espanto interroga-se a si próprio e pede uma resposta. Essa resposta articulada pela norma ocidental chama-se, em geral, Filosofia. Esse espanto liricamente expresso, sem a preocupação de uma resposta, aberto, é Poesia. Mas as primeiras formas de Filosofia exprimiam-se de forma poética. Parménides é um poema. No fundo, todo o poeta persegue sob a forma do onírico o mesmo desejo de entrar em contacto com qualquer coisa que engloba o Sentido geral da sua própria experiência.
P. – E disso terá tido consciência Pessoa, como ninguém em Portugal.
R. – Sim, Pessoa até é um caso curioso, porque demonstrou um interesse intenso pela Filosofia no sentido de disciplina... Possivelmente quis fazer um curso de Filosofia, vemos isso através dos numerosos extractos dos livros que ele lia. Nesse sentido, Fernando Pessoa pertence igualmente a uma maneira clássica de encarar a Filosofia. A Filosofia devia dar-lhe a resposta à interrogação última, devia dar-lhe, em termos racionais, o Absoluto. E porque ela não lha dá, ele fractura-se espiritualmente, psiquicamente, abdica da ideia de encontrar uma Filosofia que resuma o mistério do Universo e compreende que esse é um ideal inexequível e que há maneiras diversas de se aproximar desse Absoluto. Pessoa compreende que o Absoluto é um mito e que não há senão uma pluralidade de caminhos, todos com a mesma possibilidade de serem essa Verdade que não existe.
P. – Coisa engraçada neste seu livro é que quando Eduardo Lourenço já está muito embrenhado em Fernando Pessoa, às tantas pára e diz mais ou menos, isto: «Atenção, que o Fernando Pessoal é muito complicado». Neste livro e nos outros, aliás. Normalmente, a orientação dos ensaios pessoanos é a contrária: fazer-nos ver que, afinal, Fernando Pessoa se explica...
R. – Isso é porque eu penso que não se pode dar-lhe a volta.
P. – Nem quer dar-lhe a volta...
R. – Sim, eu também não quero dar-lhe a volta. Não é possível, porque Pessoa já dá a volta possível a si mesmo. O texto de Pessoa é um autotexto, um texto sobre o próprio texto. E essa é a novidade que não existia na poesia anterior. Nem mesmo naquela que disso se poderia aproximar, pelo seu desejo de interrogar a Esfinge até ao último limite, como a de Antero. Mas Antero não tem esse olhar triplo, em que não há possibilidade de parar em parte nenhuma.
É por isso que desconfio de toda a gente que me vem dizer que Fernando Pessoa foi isto ou aquilo... Eu não sou capaz de dizer o que é que Fernando Pessoa foi.
P. – Cada vez mais incapaz?
R. – Cada vez mais. E, no entanto, gostaria que, lendo-me, as pessoas tivessem o sentimento de que, nessa renúncia a uma imagem completa, eu estou mais próximo do Pessoa do que um outro tipo de discurso que quereria dissolvê-lo. Exactamente dissolvê-lo.»