A muito recente publicação de um não menos interessante ensaio* de Sousa Dias sobre a actualidade do pensamento de Marx (e, registe-se, o modo como esse próprio conceito de actual é pensado é, ele mesmo, inovador) convida Ler Eduardo Lourenço a revisitar um aspecto relacionado com Heterodoxia I que merece agora uma menção. Como se sabe, grande parte do primeiro livro de Eduardo Lourenço, publicado em 1949 e muito por culpa de Miguel Torga (que, como Eduardo Lourenço há dias o reconheceu em Lisboa, durante o lançamento de Heterodoxias, foi decisivo até pelos contactos que tinha junto da Coimbra Editora), é constituído por uma nova versão de O Sentido da Dialéctica no Idealismo Absoluto. Primeira Parte, texto da Dissertação de Licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, três anos antes. Em Heterodoxia I, o texto também recebe um novo título, passando agora a chamar-se “O Segredo de Hegel ou o Equívoco da Dialéctica”. No entanto, as alterações não ficam por aí. Assim, para além da significativa alusão a Kierkegaard, feita por Eduardo Lourenço quando explica o carácter meta-problemático da existência humana, e que não constava no texto dactilografado da Dissertação, surgem em “O Segredo de Hegel ou o Equívoco da Dialéctica” seis novas páginas dedicadas às semelhanças e diferenças entre as concepções hegeliana e marxista de dialéctica. Como se pode ver na imagem seguinte, as duas primeiras páginas de Dissertação não incluem qualquer referência ao materialismo dialéctico.
Reprodução das duas primeiras páginas de O Sentido da Dialéctica no Idealismo Absoluto. Primeira Parte
(texto dactilografado de 1946)
Ler Eduardo Lourenço recorda que, há largos anos (e de certa forma sugestionado pelo episódio já aqui evocado neste blog no post com o título “Miranda Barbosa, Carlos de Oliveira e ... Marx”, publicado em Maio passado ), interrogou o ensaísta acerca da diferença entre as duas versões do mesmo texto. Por que motivo em Heterodoxia I aparecia uma nova redacção deste ensaio? Teria havido, por parte do jovem estudante coimbrão, receio de incluir num trabalho académico referências, mesmo que de teor crítico, a um filósofo maldito na Universidade portuguesa dos anos 40? A resposta de Eduardo Lourenço foi desconcertante, mas, ao mesmo tempo, perfeitamente lógica. Prosaicamente lógica, mesmo. «Não, a razão pela qual na minha tese não surgem essas alusões [à dialéctica marxista] tem a ver apenas com o facto de, em 1946, eu ainda não conhecer suficientemente o pensamento de Marx». Ou seja, certamente motivado por conversas com os seus colegas e amigos neo-realistas, Eduardo Lourenço fez novas leituras e daí resultou a introdução de uma parte significativa do capítulo mais extenso do seu primeiro livro. Como se pode ler na transcrição que a seguir se apresenta (e que respeita o texto fixado para a edição do primeiro volume das Obras Completas), “O Segredo de Hegel ou o Equívoco da Dialéctica” é um texto que, embora respeite as intuições fundamentais de Dissertação de 1946, ficou notoriamente enriquecido com as reflexões que Eduardo Lourenço fez entretanto.
«O idealismo absoluto e a dialéctica que o articula e percorre como eterno movimento da Ideia, que, sendo a realidade total, solicita desde dentro as suas próprias contradições e desde dentro as concilia, superando-as, representam a tentativa mais perfeita que a filosofia realizou para conceber o pensamento como forma absoluta do existente. A verdade é transmutada “dialecticamente” no devir do pensamento, encerrando este, naquela, como em Hegel, ou então, transportando aquela neste, como em Gentile. Toda a verdade é devir do pensamento, para Hegel. Todo o devir do pensamento é verdade, para Gentile. Verum et factum convertuntur. Num caso e no outro, as duas doutrinas postulam logicamente a negação de toda a transcendência, com um rigor e uma coerência de que a história não oferece exemplo segundo.
Sob uma tal assimilação do plano da História ao da eternidade, do indivíduo ao absoluto, sob tal divinização, pelo menos aparente, conservará a consciência do homem algum significado compreensível? Nesta integração perfeita do processo e dos actos nos valores, guardarão algum sentido as distinções do verdadeiro e do falso, do bem e do mal?
Antes das considerações estritamente lógicas e metafísicas sobre o idealismo e a dialéctica, detenhamo-nos um pouco sobre a significação existencial, implicada na afirmação da imanência absoluta.
O idealismo deu-lhe uma tonalidade violenta e isso pode parecer a muitos o sinal duma absoluta novidade. De facto, representa o termo lógico dum processo que começou com o próprio pensamento e não consiste noutra coisa do que na expressão rigorosa duma das virtualidades limites do pensamento humano. A outra virtualidade limite é inversa e residirá num tipo de explicação em que o pensamento figure como realidade absolutamente segunda em relação à realidade primeira do universo, que será então radicalmente diversa do pensamento: será matéria. Tanto o primeiro como o segundo tipo de explicação têm um fundo comum: ambos se apresentam com a pretensão a explicações absolutas do real. Ambos manifestam a mesma crença nas possibilidades da razão como órgão do Absoluto. Por isso mesmo, embora o Absoluto seja diverso, o processo explicativo desse Absoluto, a sua manifestação temporal ou, usando um termo hegeliano, a sua fenomenologização, obedece às mesmas leis lógicas fundamentais. E, sendo assim, a crítica à forma lógica que esse processo apresenta, isto é, à dialéctica, é exactamente a mesma, quer se trate de Hegel, quer se trate de Marx.
A diferença é de ponto de partida mas é de tal sorte que no domínio metafísico marca a incomparável superioridade do ponto de vista hegeliano sobre o marxista. Enquanto é aceitável para a inteligência, poder supor que o absoluto concebido como Espírito, como Consciência Absoluta, suscite em si próprio um processo de progressão e de manifestação, susceptível de ser interpretado lógica e racionalmente, torna-se ininteligível a admissão dum Absoluto material, duma Inconsciência, manifestando-se não se sabe porquê numa forma igualmente lógica e racional.
Esta, e apenas esta, é a razão por que a quase totalidade dos filósofos responsáveis do Ocidente ou do Oriente (Lossky e Simon Frank) não aceitam o materialismo dialéctico, embora possam aceitar sem repugnância o materialismo puro e simples. É cómodo para os teóricos marxistas tentar fazer crer que a recusa do materialismo dialéctico assenta unicamente numa condição de classe que torna improvável (para dar razão à teoria) que esses filósofos, ou autores de história da filosofia, possam compreender o marxismo ou dar ao materialismo dialéctico o lugar de honra e (único) que segundo eles lhe competiria na história da cultura humana. Esquecem que o homem europeu autêntico fez da confissão do verdadeiro a sua carta de liberdade e que jamais, fosse rei, bispo, sacerdote, general ou professor, isso o impediu em absoluto de dizer que o preto é preto e o branco é branco. Tenha tido necessidade para isso de deixar de ser rei, bispo, general ou professor. Esta é a prova histórica de que o reconhecimento da verdade é independente das condições de classe, pela razão simples de que, se é relativamente justo afirmar que o homem pertence sempre a uma classe, não o é em absoluto, porque a classe não esgota o homem. Se o homem se pode voltar contra a sua classe de origem (e os exemplos não têm fim) isso significa que o homem transcende a classe.
Seria ridículo insistir nesta evidência, se não fosse uma realidade espantosa a existência histórica duma mentalidade que a nega e cujos movimentos podem decidir do destino próximo da humanidade. O mito da classe (esquema abstracto e simplista, embora adequado para exprimir um tipo justo de relação, a relação homem-economia e só esta) tornou-se tão avassalador que mesmo muitos daqueles que não podem aceitar todas as consequências da dialéctica marxista (Sartre e Merleau-Ponty, por exemplo [Cf. Qu’est-ce que la littérature? e Humanisme et terreur, de Sartre e Merleau-Ponty, respectivamente.]) temem rejeitar o esquema absoluto da luta de classes e servem-se nas suas análises duma maneira pouco coerente duma divisão que essas mesmas análises deviam destruir.
O motivo é visível. Negando a realidade da divisão em classes como mundos destinados a uma luta mortal e cujos universos interiores seriam tão irredutíveis como o do tigre que tem fome e o da gazela gorda que se lhe atravessa no caminho, temem destruir o espírito de justiça, o espírito revolucionário que segundo eles seria inseparável da admissão desse conflito e dessa divisão. Temem, em resumo, ser apodados de reaccionários, para usarmos a gíria corrente nas discussões políticas.
Parece-nos uma dialéctica sofística, uma maneira abusiva de tomar a parte pelo todo. Pode admitir-se o esquema da divisão radical das classes (e mesmo essa meramente histórica) sobre o plano em que ela é válida, isto é, sobre o plano económico, sem ver necessidade alguma de a tornar extensiva às estrelas da Via Láctea, quer dizer, às formas universais da consciência humana e dos seus valores. Exemplificando: as condições de classe de Winston Churchill, Stafford Cripps e Bertrand Russell são idênticas e, contudo, as suas concepções económicas e ideológicas são radicalmente diversas. Como explicar isso senão admitindo que as infra-estruturas não condicionam em absoluto as chamadas super-estruturas? O que isso significa vê-se: o homem pode erguer-se a uma consideração desinteressada de qualquer objecto e domínio da realidade, mercê de algo que nele próprio goza duma independência difícil de compreender, mas impossível de negar: o pensamento. A simples existência da ciência e sobretudo a existência da filosofia esvaziam o conceito de classe de toda a pretensão a superestrutura da verdade em sentido genérico, reservando a sua aplicação (é preciso saber entre que limites) para o domínio das relações do homem com a economia.
Não nos interessa nada, a não ser dum ponto de vista puramente sociológico, a verificação exacta de que a lógica de grupos é uma lógica diversa da do indivíduo e a de que todas as excepções individuais não invalidam o comportamento básico do grupo a que ele pertence. Efectivamente, o caso geral é o duma estreita determinação das condições de classe sobre o comportamento individual, como é caso geral da condição física dos homens estarem integrados num sistema gravitacional que lhes permite partir as costelas se caírem à rua dum sétimo andar. Tanto num caso como noutro a classe ou o sistema gravitacional são duas realidades que explicam perfeitamente que Winston Churchill defenda a propriedade privada ou o Sr. Smith tenha tido morte instantânea. Simplesmente, o homem pode tomar consciência da situação englobante, e na medida em que tomar consciência assumir a sua figura de indivíduo, destacando-se das coisas por um acto de escolha através do qual se constitui como liberdade. E então o Right Hon. W. Churchill pode tornar-se apenas Bertrand Russell e o Sr. Smith chegar incólume ao meio da rua, se, antes de se atirar da janela, teve a prudência de envergar um pára-quedas. Não importa que os Bertrand Russell sejam raros e que as pessoas que se exercitam a saltar da janela para a rua estejam desprovidas de pára-quedas. Basta que haja um só homem que transcenda a classe para que todos os homens sejam susceptíveis de a transcender também. E lá se vai o absoluto da teoria.
Ora, é esta tomada de consciência, capaz de permitir simultaneamente que o homem transcenda a classe e transcenda o mundo natural, descobrindo através da reflexão as conexões fundamentais que suportam e explicam a aparência do real, que o materialismo dialéctico tem dificuldade em apreender e valorizar e que o idealismo hegeliano toma por assim dizer como centro absoluto, fazendo do seu processo o processo mesmo da realidade.
Embora opostas, a concepção hegeliana do mundo e a concepção marxista, em obediência à inelutável lei dialéctica que elas próprias foram as primeiras a explicar, reservam à situação humana o mesmo modo de existência. Esse modo de existência depende numa e noutra duma única relação: a da realidade absoluta com uma das suas manifestações, o ser humano. Ao mesmo tempo participante do absoluto e aparência dele, momento do devir e consciência do mesmo devir, o homem tem na dialéctica a imagem adequada da sua realidade de ser necessário e ser aparente. Todo o esforço da dialéctica residirá na tentativa de unir o que parece não poder unir-se, de conciliar o inconciliável, demonstrando através do seu movimento que as contradições do real são vencidas pelo próprio movimento que as põe a descoberto.
O idealismo hegeliano e o materialismo dialéctico são duas formas da mais antiga, da mais incoercível tentação humana: a tentação do absoluto. Aquilo que o Génesis apresenta como conselho demoníaco, como insinuação intemporal da “mais astuta” das criaturas, jamais encontrou uma maneira de existir tão ambiciosa e tão lógica, mas deixou de ser tentação diabólica para ser assumida com plena consciência como desejo humano.
Na verdade, na história do pensamento humano tudo se passa como se o conselho de Lúcifer tenha sido tomado a sério. O eritis sicut dei [Gén., III, 5.] cresceu e multiplicou-se no coração dos homens. Isto não é simples imagem mítica, mas manifestação do secreto desejo da vontade de se talhar um reino para a sua infinidade. O criar na dor, o subsistir suando, o ouvir sem descanso as portas do tempo ou da felicidade cerrando-se para nunca mais, são impotentes contra a tentação imortal de colher pelas nossas mãos os frutos da árvore da vida, plantada no meio de todas as coisas. Deus pode recolher ao silêncio da sua infinita solidão, que a nudez do primeiro instante encontrará o seu vestido e a vergonha a sua sombra. A vida rodará nos gonzos do tempo, a lembrança dos anjos de espada flamejante guardando o paraíso soçobrará como tudo o mais e unicamente a esperança terrestre de sermos como deuses continuará crescendo. Um dia mesmo, surgirá a inevitável pergunta: houve alguma coisa correspondente a esse mito inquietante, tão revelador da fraqueza do homem?
«O idealismo absoluto e a dialéctica que o articula e percorre como eterno movimento da Ideia, que, sendo a realidade total, solicita desde dentro as suas próprias contradições e desde dentro as concilia, superando-as, representam a tentativa mais perfeita que a filosofia realizou para conceber o pensamento como forma absoluta do existente. A verdade é transmutada “dialecticamente” no devir do pensamento, encerrando este, naquela, como em Hegel, ou então, transportando aquela neste, como em Gentile. Toda a verdade é devir do pensamento, para Hegel. Todo o devir do pensamento é verdade, para Gentile. Verum et factum convertuntur. Num caso e no outro, as duas doutrinas postulam logicamente a negação de toda a transcendência, com um rigor e uma coerência de que a história não oferece exemplo segundo.
Sob uma tal assimilação do plano da História ao da eternidade, do indivíduo ao absoluto, sob tal divinização, pelo menos aparente, conservará a consciência do homem algum significado compreensível? Nesta integração perfeita do processo e dos actos nos valores, guardarão algum sentido as distinções do verdadeiro e do falso, do bem e do mal?
Antes das considerações estritamente lógicas e metafísicas sobre o idealismo e a dialéctica, detenhamo-nos um pouco sobre a significação existencial, implicada na afirmação da imanência absoluta.
O idealismo deu-lhe uma tonalidade violenta e isso pode parecer a muitos o sinal duma absoluta novidade. De facto, representa o termo lógico dum processo que começou com o próprio pensamento e não consiste noutra coisa do que na expressão rigorosa duma das virtualidades limites do pensamento humano. A outra virtualidade limite é inversa e residirá num tipo de explicação em que o pensamento figure como realidade absolutamente segunda em relação à realidade primeira do universo, que será então radicalmente diversa do pensamento: será matéria. Tanto o primeiro como o segundo tipo de explicação têm um fundo comum: ambos se apresentam com a pretensão a explicações absolutas do real. Ambos manifestam a mesma crença nas possibilidades da razão como órgão do Absoluto. Por isso mesmo, embora o Absoluto seja diverso, o processo explicativo desse Absoluto, a sua manifestação temporal ou, usando um termo hegeliano, a sua fenomenologização, obedece às mesmas leis lógicas fundamentais. E, sendo assim, a crítica à forma lógica que esse processo apresenta, isto é, à dialéctica, é exactamente a mesma, quer se trate de Hegel, quer se trate de Marx.
A diferença é de ponto de partida mas é de tal sorte que no domínio metafísico marca a incomparável superioridade do ponto de vista hegeliano sobre o marxista. Enquanto é aceitável para a inteligência, poder supor que o absoluto concebido como Espírito, como Consciência Absoluta, suscite em si próprio um processo de progressão e de manifestação, susceptível de ser interpretado lógica e racionalmente, torna-se ininteligível a admissão dum Absoluto material, duma Inconsciência, manifestando-se não se sabe porquê numa forma igualmente lógica e racional.
Esta, e apenas esta, é a razão por que a quase totalidade dos filósofos responsáveis do Ocidente ou do Oriente (Lossky e Simon Frank) não aceitam o materialismo dialéctico, embora possam aceitar sem repugnância o materialismo puro e simples. É cómodo para os teóricos marxistas tentar fazer crer que a recusa do materialismo dialéctico assenta unicamente numa condição de classe que torna improvável (para dar razão à teoria) que esses filósofos, ou autores de história da filosofia, possam compreender o marxismo ou dar ao materialismo dialéctico o lugar de honra e (único) que segundo eles lhe competiria na história da cultura humana. Esquecem que o homem europeu autêntico fez da confissão do verdadeiro a sua carta de liberdade e que jamais, fosse rei, bispo, sacerdote, general ou professor, isso o impediu em absoluto de dizer que o preto é preto e o branco é branco. Tenha tido necessidade para isso de deixar de ser rei, bispo, general ou professor. Esta é a prova histórica de que o reconhecimento da verdade é independente das condições de classe, pela razão simples de que, se é relativamente justo afirmar que o homem pertence sempre a uma classe, não o é em absoluto, porque a classe não esgota o homem. Se o homem se pode voltar contra a sua classe de origem (e os exemplos não têm fim) isso significa que o homem transcende a classe.
Seria ridículo insistir nesta evidência, se não fosse uma realidade espantosa a existência histórica duma mentalidade que a nega e cujos movimentos podem decidir do destino próximo da humanidade. O mito da classe (esquema abstracto e simplista, embora adequado para exprimir um tipo justo de relação, a relação homem-economia e só esta) tornou-se tão avassalador que mesmo muitos daqueles que não podem aceitar todas as consequências da dialéctica marxista (Sartre e Merleau-Ponty, por exemplo [Cf. Qu’est-ce que la littérature? e Humanisme et terreur, de Sartre e Merleau-Ponty, respectivamente.]) temem rejeitar o esquema absoluto da luta de classes e servem-se nas suas análises duma maneira pouco coerente duma divisão que essas mesmas análises deviam destruir.
O motivo é visível. Negando a realidade da divisão em classes como mundos destinados a uma luta mortal e cujos universos interiores seriam tão irredutíveis como o do tigre que tem fome e o da gazela gorda que se lhe atravessa no caminho, temem destruir o espírito de justiça, o espírito revolucionário que segundo eles seria inseparável da admissão desse conflito e dessa divisão. Temem, em resumo, ser apodados de reaccionários, para usarmos a gíria corrente nas discussões políticas.
Parece-nos uma dialéctica sofística, uma maneira abusiva de tomar a parte pelo todo. Pode admitir-se o esquema da divisão radical das classes (e mesmo essa meramente histórica) sobre o plano em que ela é válida, isto é, sobre o plano económico, sem ver necessidade alguma de a tornar extensiva às estrelas da Via Láctea, quer dizer, às formas universais da consciência humana e dos seus valores. Exemplificando: as condições de classe de Winston Churchill, Stafford Cripps e Bertrand Russell são idênticas e, contudo, as suas concepções económicas e ideológicas são radicalmente diversas. Como explicar isso senão admitindo que as infra-estruturas não condicionam em absoluto as chamadas super-estruturas? O que isso significa vê-se: o homem pode erguer-se a uma consideração desinteressada de qualquer objecto e domínio da realidade, mercê de algo que nele próprio goza duma independência difícil de compreender, mas impossível de negar: o pensamento. A simples existência da ciência e sobretudo a existência da filosofia esvaziam o conceito de classe de toda a pretensão a superestrutura da verdade em sentido genérico, reservando a sua aplicação (é preciso saber entre que limites) para o domínio das relações do homem com a economia.
Não nos interessa nada, a não ser dum ponto de vista puramente sociológico, a verificação exacta de que a lógica de grupos é uma lógica diversa da do indivíduo e a de que todas as excepções individuais não invalidam o comportamento básico do grupo a que ele pertence. Efectivamente, o caso geral é o duma estreita determinação das condições de classe sobre o comportamento individual, como é caso geral da condição física dos homens estarem integrados num sistema gravitacional que lhes permite partir as costelas se caírem à rua dum sétimo andar. Tanto num caso como noutro a classe ou o sistema gravitacional são duas realidades que explicam perfeitamente que Winston Churchill defenda a propriedade privada ou o Sr. Smith tenha tido morte instantânea. Simplesmente, o homem pode tomar consciência da situação englobante, e na medida em que tomar consciência assumir a sua figura de indivíduo, destacando-se das coisas por um acto de escolha através do qual se constitui como liberdade. E então o Right Hon. W. Churchill pode tornar-se apenas Bertrand Russell e o Sr. Smith chegar incólume ao meio da rua, se, antes de se atirar da janela, teve a prudência de envergar um pára-quedas. Não importa que os Bertrand Russell sejam raros e que as pessoas que se exercitam a saltar da janela para a rua estejam desprovidas de pára-quedas. Basta que haja um só homem que transcenda a classe para que todos os homens sejam susceptíveis de a transcender também. E lá se vai o absoluto da teoria.
Ora, é esta tomada de consciência, capaz de permitir simultaneamente que o homem transcenda a classe e transcenda o mundo natural, descobrindo através da reflexão as conexões fundamentais que suportam e explicam a aparência do real, que o materialismo dialéctico tem dificuldade em apreender e valorizar e que o idealismo hegeliano toma por assim dizer como centro absoluto, fazendo do seu processo o processo mesmo da realidade.
Embora opostas, a concepção hegeliana do mundo e a concepção marxista, em obediência à inelutável lei dialéctica que elas próprias foram as primeiras a explicar, reservam à situação humana o mesmo modo de existência. Esse modo de existência depende numa e noutra duma única relação: a da realidade absoluta com uma das suas manifestações, o ser humano. Ao mesmo tempo participante do absoluto e aparência dele, momento do devir e consciência do mesmo devir, o homem tem na dialéctica a imagem adequada da sua realidade de ser necessário e ser aparente. Todo o esforço da dialéctica residirá na tentativa de unir o que parece não poder unir-se, de conciliar o inconciliável, demonstrando através do seu movimento que as contradições do real são vencidas pelo próprio movimento que as põe a descoberto.
O idealismo hegeliano e o materialismo dialéctico são duas formas da mais antiga, da mais incoercível tentação humana: a tentação do absoluto. Aquilo que o Génesis apresenta como conselho demoníaco, como insinuação intemporal da “mais astuta” das criaturas, jamais encontrou uma maneira de existir tão ambiciosa e tão lógica, mas deixou de ser tentação diabólica para ser assumida com plena consciência como desejo humano.
Na verdade, na história do pensamento humano tudo se passa como se o conselho de Lúcifer tenha sido tomado a sério. O eritis sicut dei [Gén., III, 5.] cresceu e multiplicou-se no coração dos homens. Isto não é simples imagem mítica, mas manifestação do secreto desejo da vontade de se talhar um reino para a sua infinidade. O criar na dor, o subsistir suando, o ouvir sem descanso as portas do tempo ou da felicidade cerrando-se para nunca mais, são impotentes contra a tentação imortal de colher pelas nossas mãos os frutos da árvore da vida, plantada no meio de todas as coisas. Deus pode recolher ao silêncio da sua infinita solidão, que a nudez do primeiro instante encontrará o seu vestido e a vergonha a sua sombra. A vida rodará nos gonzos do tempo, a lembrança dos anjos de espada flamejante guardando o paraíso soçobrará como tudo o mais e unicamente a esperança terrestre de sermos como deuses continuará crescendo. Um dia mesmo, surgirá a inevitável pergunta: houve alguma coisa correspondente a esse mito inquietante, tão revelador da fraqueza do homem?
Os mais sábios dos homens, os que o oráculo de Delfos escolheu ou os que se sentiram condenados por Deus a ser filósofos, responderão que não. Decididamente, não. Simplesmente aconteceu que o eros sufocado, a vontade de querer e de poder ou até o instinto da morte foram mais fortes do que a lucidez da ratio e puderam um dia colocar-se na nossa frente como se não tivessem nascido do nosso desejo e não fossem coisa puramente nossa. O pensar claro, a filosofia, devem realizar a catarsis destas ilusões, sobretudo porque tolhem o caminho da vontade de dominar o universo. E mesmo que o mito correspondesse a alguma coisa, não nos ensinou Prometeu, o que odeia todos os deuses, as palavras que libertam?» [Heterodoxias, Lisboa, F.C.Gulbenkian, 2011, pp. 68-72].
*Diga-se que Grandeza de Marx. Por uma política do impossível (Lisboa, Assírio & Alvim, 2011) é um livro que merece uma atenção crítica que, ao que Ler Eduardo Lourenço julga saber, não tem existido, o que é obviamente lamentável, pois trata-se de um ensaio que, para além de lido, precisa de ser discutido. Por outro lado, as relações do pensamento de Eduardo Lourenço com Marx e o marxismo também justificariam um estudo atento. Fica a sugestão.