A ilustrar o anterior texto deste blog e no qual Teresa Filipe fala, entre outras coisas, dos prefácios que Eduardo Lourenço escreveu para os dois livros de Otelo de Saraiva de Carvalho, surge uma foto em que se vê este último de costas. Trata-se de uma cena do filme Gestos e Fragmentos realizado por Alberto Seixas Santos, no qual participam, para além de Otelo, o realizador Robert Kramer (1939-1999) interpretando um jornalista americano e ... Eduardo Lourenço. Não é seguramente por causa destes noventa minutos rodados entre 1980 e 1982 que o ensaísta-actor passará à imortalidade, mas...
... claro que esta circunstância de Eduardo Lourenço participar em Gestos e Fragmentos seria mais do que suficiente para que a ela aqui se fizesse menção. A película, que nunca chegou a ter distribuição comercial, conheceu a sua estreia há precisamente vinte e oito anos na Ar.CO em Lisboa, ou seja, em 29 de Abril de 1983. É certo que a data que hoje aqui se evoca não corresponde ao início de uma fulgurante carreira de Eduardo Lourenço na 7ª Arte, mas Ler Eduardo Lourenço não podia deixar de se referir a esse momento, retratado na imagem anterior.
No entanto talvez interesse reparar no sub-título do filme que aparece quase escondido no magnífico cartaz de João Botelho. Trata-se Ensaio sobre os Militares e o Poder, explícita citação do livro quase homónimo do ensaísta. De resto, Ler Eduardo Lourenço confessa ter presenciado o filme apenas uma vez, numa episódica transmissão no segundo canal da RTP (mas nem isso pode garantir, admitindo até a hipótese de essa exibição não ter sequer existido senão em sonhos...), mas sublinha que Eduardo Lourenço aparece starring as himself, se é permitida a expressão, lendo (longamente?) passagens dos seus textos de Os Militares e o Poder e ainda numa conversa com o militar-herói da Revolução portuguesa que, apesar do seu cinéfilo nome de código de Óscar durante as operações militares que conduziram ao golpe de 25 de Abril, também não chegou a enveredar por uma carreira em Hollywood.
Na impossibilidade de se visionar o filme (haverá dvd?), Ler Eduardo Lourenço aconselha vivamente a leitura de Alberto Seixa Santos (Lisboa, 2008), catálogo organizado e editado pelo ABC Cine-Clube de Lisboa por ocasião de uma retrospectiva realizada entre 23 de Março e 1 de Abril de 2006, onde se poderá encontrar um valioso conjunto de ensaios sobre a filmografia e o ensaísmo crítico de Seixa Santos, bem como as fichas técnicas de todos os seus filmes (incluindo, como é óbvio, Gestos e Fragmentos). De entre esses ensaios e documentos destaca-se, por exemplo, o texto em Robert Kramer, autor de uma importante obra no âmbito do cinema documental, relata a sua experiência no filme. E, por outro lado, uma muito interessante entrevista que João Fagundes, Joaquim Diabinho e Manuel Neves fizeram ao realizador homenageado e no qual Seixa Santos se refere a vários aspectos da sua obra. Relativamente a Gestos e Fragmentos diz o seu autor: «Os Gestos é completamente pensado, plano a plano, ângulo a ângulo, com um rigor absolutamente milimétrico. Por exemplo, as entrevistas na própria casa de Otelo de Saraiva de Carvalho têm umas barras escuras nas paredes como se fossem grades, falso reflexo de janelas de marquise de alumínio, e a casa dele não tinha nada disso. Era uma teia de fita adesiva com projectores por detrás que faziam uma espécie de grelha, davam a sugestão de prisão, de grades de cadeia projectadas na parede. Estava tudo pensado desde o início. Os décors foram escolhidos milimetricamente» (Alberto Seixa Santos, op. cit., p. 25). E, mais à frente, Seixa Santos apresenta os motivos pelos quais se considera um cineasta-ensaísta. «Tanto Brandos Costumes como Gestos e Fragmentos são ensaios. Eu tenho uma cabeça de ensaísta. Acho que isso vem de duas fontes. Uma é o cimena de Godard, evidentemente. O cinema de Godard tem um período que ele próprio chamava, se não me engano, de cinema do quadro preto. Um cinema-ensaio. E isso fascinava-me bastante. Por outro lado, há a influência de textos teóricos e de peças de Brecht, que tiveram para mim uma grande importância» (Ibid., p. 26).