terça-feira, 5 de abril de 2011

Correspondente de Arte de "O Comércio do Porto" (nº 4): às voltas com um lápis azul



Ler Eduardo Lourenço encerra hoje uma série de quatro textos dedicados à colaboração prestada ao longo de vários anos pelo ensaísta à página literária de O Comércio do Porto, dirigida por Costa Barreto. Esta série resultou da revelação do precioso lote de cartas e postais enviados pelo amigo de Valbom a Eduardo Lourenço e que se encontram no espólio deste. Mas, quem foi Costa Barreto? José-Augusto França, outro dos colabradores de “Cultura e Arte”, traça-nos um retrato impressivo nas suas Memórias, de onde se retira também esta fotografia.




Eduardo Lourenço e José-Augusto França em Nice (1982)


«Desde 1953, na página literária d’O Comércio do Porto, eu mantive uma colaboração regular que, começando também sobre Orson [Welles], logo passou, pela “Fotografia subjectiva” do Fernando Lemos, a temas de artes plás­ticas que me eram especialmente encomendados pelo Costa Barreto – e nunca encontrei ninguém mais correcto, certo e digno, em todos os jornais portugue­ses em que escrevi! Apartado pela Censura e pelo próprio reaccionarismo da direcção do velho e estimado quotidiano portuense, Costa Barreto, antigo oficial e monárquico de fé, era fiel aos seus colaboradores, dando-lhes inteira independência de opi­nião, e reunindo assim, no melhor suplemento dos jornais portugueses, em costume de então, alguns dos maiores nomes nacionais, e defendendo-os sem­pre, como ao Óscar Lopes policialmente obrigado a usar um pseudónimo, de Luso do Carmo. Só uma coisa ele não pôde evitar-me: a proibição do jornal de falar nas suas colunas do Amadeo de Souza Cardoso, por alguma misteriosa razão, não certamente estética (pobre do director!) mas que suponho ser por questões antigas de familias... A carta em que Costa Barreto recusava o meu artigo, que aliás lhe fazia falta, é um modelo de discreta dignidade, que guardei. Publiquei com ele 166 artigos até 1973, que foi a data da sua morte e do fim real da página, por fidelidade ao amigo» [José-Augusto França, Memórias para o ano 2000, Lisboa, Livros Horizonte, 2000, p. 118].





O testemunho de José-Augusto França vem também sublinhar o que, em textos anteriores deste blog, já se afirmou: Costa Barreto é um actor decisivo da vida cultural portuguesa da segunda metade do século passado, quanto mais não seja porque manteve uma intensa correspondência literária com alguns dos nossos mais importantes escritores e intelectuais. Mas o texto que se acaba de citar acrescenta um pormenor que é no mínimo curioso: Costa Barreto era um «antigo oficial e monárquico de fé» que, antes de mais, «era fiel aos seus colaboradores, dando-lhes inteira independência de opi­nião». Nesse sentido, poder-se-á dizer que Costa Barreto personificava aquilo a que Kant chamou, em texto célebre, o verdadeiro espírito da Aufklärung. Claro que a sua tenacidade nem sempre lhe permitia que saísse vencedor nas pelejas com o exército de lápis azúis que impunha a censura oficial do Estado Novo. Ora, tal como sucedeu com José-Augusto França, também Eduardo Lourenço foi vítima do irritante lápis que suspendeu e depois cortou um texto sobre Kierkegaard e ... Marx, como nos dão notícia estas duas cartas de Costa Barreto, com as datas de 17 de Dezembro de 1955 e de 3 de Janeiro de 1956.















Este episódio é, evidentemente, lamentável em si mesmo, como todo e qualquer acto censório. Todavia, compreende-se que tenha desagradado não só a Costa Barreto, como também e em especial a Eduardo Lourenço. Afinal, tratava-se do seu primeiro texto em “Cultura e Arte”. Por outro lado, sabe-se hoje como Kierkegaard constitui um interlocutor determinante para a configuração específica do pensamento do autor de Heterodoxia. Ora, neste texto até hoje inédito, Eduardo Lourenço, sem deixar de registar o diferente enfoque de cada um deles, sublinha a natureza revolucionária do pensamento de dois dos mais marcantes filósofos do século XIX. E, a partir deles, encontra uma nova perspectivação do clássico problema filosófico da verdade. Com efeito, «a verdade não é uma ideia, nem um sistema de ideias, nem uma realidade qualquer universal correspondente à sensibilidade, à vontade ou ao entendimento e da qual estes sejam o reflexo ou os criadores, mas sim uma realidade particular existente, uma realidade histórica para um, existencial para outro. Em estreita conexão com isto, o pensador não é o medium de um pensamento universal mas um existente cujo pensamento está em estreita dependência dessa realidade particular: o momento histórico da luta de classes para Marx, a relação pessoal do homem com Deus, para Kierkegaard. Fora desta dependência não há senão abstracção (e traição também) para um e vida inautêntica para outro».
Quem conheça hoje a obra e o pensamento de Eduardo Lourenço facilmente perceberá que, e não apenas neste parágrafo, algo de verdadeiramente essencial estava já escrito em 1956. Por isso, aqui se deixa uma cópia das provas de um artigo «cuja suspensão foi ditada no Porto e o corte em Lisboa», segundo Costa Barreto.