por Teresa Filipe
A propósito de democracia: dois Prefácios de Eduardo Lourenço a Otelo Saraiva de Carvalho. O primeiro de 1977 (“Um homem do (nosso) destino”, Otelo Saraiva de Carvalho, Alvorada em Abril, Lisboa, Bertrand, 1977, pp. 9-14), o segundo de 2011 (“Prefácio”, Otelo Saraiva de Carvalho, O Dia Inicial. 25 de Abril. Hora a Hora, Lisboa, Objectiva, 2011, pp. 13-20). Trinta e sete anos de democracia – uma criança, portanto.
«Mais importante que o destino é a viagem», escreve algures o autor que dá nome e sentido a este blog. Independentemente do destino – democrático – a que este singular momento da nossa história nos tenha conduzido, o mais importante foi ter sido levado a cabo. Ainda que o seu herói epónimo, se soubesse o que sabe hoje talvez não tivesse feito o que fez, o importante foi, e é, tê-lo feito. E independentemente do que se pense agora ou antes acerca do homem, o mais importante é ele ter sido quem foi naquela madrugada. De repente, um cidadão anónimo avança para a boca de cena e assume o papel principal. Não se exigem características especiais, nem se consegue encontrar a receita precisa para fabricar heróis. Serão talvez o resultado de condições específicas no tempo? Mais tarde ou mais cedo, alguém teria de assumir o controlo do nosso destino. Por isso lemos Fernando Pessoa logo na epígrafe ao Prefácio de 77: «Deus é o agente/ O herói a si assiste, vário/ E inconsciente». Deus, destino ou Fado, maior que o herói que o leva a cabo. Esse é também o sentido da famosa réplica aludida pelo autor do Prefácio de 2011. Vítor Alves, quando questionado por Spínola acerca da paternidade da revolução, dita: «Fomos todos!». Diluída a responsabilidade dos actos praticados, assumindo cada um a sua parte na voz do Coro, cada um reclamando o seu lugar na conquista da Liberdade, aquilo que enquanto acção individual se pune transforma-se, enquanto acção colectiva, no poder de punir. Essa é a dialéctica. Essa é a força e o poder da união. A união faz a força e não se pode prender todo um País.
Independentemente das condições paradoxais da nossa Revolução, independentemente de se verificar hoje a subversão dos valores e ideais que inspiraram os homens e as mulheres de 74, o mais importante é eles terem existido daquela maneira, naquela madrugada. Poderemos sempre tentar procurá-los no nosso espírito. É esse o poder dos que inspiram, é esse o poder do sonho sobre a realidade. Independentemente das subversões e desleituras – conceito de Eduardo Lourenço já utilizado neste blog – a que estão sujeitos todos aqueles que tomam parte na coisa pública, continuam a chamar-nos à boca de cena, a transmitir-nos a confiança que é precisa para agir, a confiança de que é possível mudar. Aristóteles disse algures que a democracia perfeita seria uma tirania. Eduardo Lourenço chama a atenção que esta forma de governo, não chegando sequer a ser perfeita, exige um país adulto. Aqueles que pela sua acção desinteressada nos chamam à responsabilidade colectiva pelo que é nosso são os nossos heróis. No Prefácio de 2011, Eduardo Lourenço fala de dois Otelos. O idealista, e posteriormente, já mais informado pela experiência, o político. Mas acerca do encenador da revolução, o próprio exprime em entrevista ao Expresso, em 17 de Abril de 1999: «No dia 25 de Abril não tinha noção do que tínhamos acabado de fazer.» E mais à frente: «O meu afastamento da vida político-partidária na clandestinidade era tão grande que eu nunca tinha ouvido falar de Álvaro Cunhal.» Otelo é o personagem anónimo que em dado momento, dadas as condições singulares do drama histórico e a sua posição nela, é chamado a agir, e age. Muito possivelmente, pelo sentido de algo que hoje nos escapa com alguma facilidade: o dever.
A liberdade, empírica ou ideal, pressupõe o obstáculo e a vontade de o ultrapassar. Nessa vontade está envolvido o sentido do dever, o compromisso com os outros e com o destino que se assume nosso, e então, a possibilidade de transformar. A isso também se pode chamar maioridade, própria e política. Condição necessária para o exercício livre de democracia.