quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

De Maria Gabriela Llansol

De Maria Gabriela Llansol, uma carta. Mas, primeiro e sobre Maria Gabriela Llansol, também um magnífico texto que Maria de Lourdes Soares teve a simpatia  e a generosidade de oferecer a Ler Eduardo Lourenço e em que a autora, pela segunda vez (cf. o anterior ensaio “Encontros de confrontação que nos faltam. Eduardo Lourenço e Maria Gabriel Llansol”, Colóquio-Letras, nº 170, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Janeiro de 2009, pp. 147-162), se debruça especificamente sobre as relações literárias entre a escritora e o ensaísta. Dois documentos imperdíveis, portanto.

Eduardo Lourenço e Maria Gabriela Llansol:
carta a um legente

“que Cultura corresponde a um tal Texto
não é fácil dizê-lo”            
Eduardo Lourenço
(imagens retiradas do excelente blog http://espacollansol.blogspot.com/ e que documentam as Segundas Jornadas LLansonlianas de Sintra, realizadas em Setembro de 2010, no Centro Cultural Olga Cadaval em Sintra e que contaram também com a participação de Eduardo Lourenço).



“tinha a certeza de que, tarde ou cedo, nos havíamos de encontrar”
Maria Gabriela Llansol



Eduardo Lourenço foi um dos primeiros a perceber a fulgurância ímpar da escrita de Maria Gabriela Llansol. Com a alegria e o deslumbramento de um descobridor que de súbito se depara com uma terra «fascinante e incógnita», saudou, no final do ensaio “Con-texto cultural e novo texto português” [escrito em 1979 e publicado em O Canto do Signo. Existência e Literatura (1957-1993), Lisboa, Presença, 1994, p.280-283], o seu encontro com O Livro das Comunidades [Porto, Afrontamento, 1977].
Quando se conheceram pessoalmente em Paris, por ocasião do Belles Étrangères de 1988, dedicado a Portugal, Llansol e Lourenço, cada qual a seu modo, por diferentes caminhos de leitura e de escrita, há muito vinham pensando sobre Portugal e sua pertença à cultura europeia. Além da experiência de viver fora do seu país e da prática do bilinguismo, ambos tinham outros pontos em comum, como o cuidado de assinalar o local e a data dos textos, e algumas afinidades eletivas – Pessoa/Aossê, Camões/Comuns, Jesus/Joshua... (e mais tarde teriam também Vergílio/o Mais Jovem). 
A escritora fez duas intervenções nesse evento, a primeira na FNAC e a outra na Sorbonne (cujo texto, redigido em francês, enviou a Lourenço junto com a carta de 23/12/1988), posteriormente incluídas em Lisboaleipzig 1 com os títulos “Nós estamos de volta” e “Por que não pude deixar de vir”, respectivamente [Lisboa, Rolim, 1994, pp. 88-96]. Nesse evento, Maria Gabriela também pela primeira vez se encontrou “face a face” com seu futuro “companheiro filosófico”, Vergílio Ferreira, a quem chamaria “o Mais Jovem” e daria um corpo de fulgor, incorruptível, em Inquérito às Quatro confidências [Lisboa, Relógio d’Água, 1996, p. 31].
O ano deste encontro foi intenso, sob diferentes perspectivas. Em 1988 Lourenço publicou Nós e a Europa e recebeu o Prêmio Charles Veillon pelo conjunto de sua obra. Também em 1988, e não por acaso, «ainda na euforia inicial das comemorações dos descobrimentos», Llansol publicou Da sebe ao ser, procurando contornar o paradigma de mais-pátria” e “mais-oceano”. Este livro, como a escritora comentaria em O Senhor de Herbais [Lisboa, Relógio d’Água, 2002, p. 80], não teve praticamente recensões críticas, salvo a (excelente) de António Guerreiro, As Fábulas da História [Expresso, 8/4/1989]. Antes e depois da publicação de Da sebe ao ser foram atribuídos alguns prémios a Llansol. Não os esperava ou desejava. Aceitou-os porque os tomou «na sua acepção radical de fraternidade entre nós diante do sentido, como um momento em que partilhamos um dos bens da Terra», o da partilha-convívio de «quem escreve e lê, em mútuo», permitindo assim que os textos «cheguem mais longe» [Lisboaleipzig 1, pp. 85-87].  Desejava, portanto, criar «um lugar real de escrita e de leitura», conforme declarou em carta aberta a Eduardo Prado Coelho [Ciberkiosk, nº 7, 1999].
Lourenço não escreveu a recensão sobre Da sebe ao ser que lhe solicitara Maria Rolim, editora de Llansol na época. Todavia, foi deixando sinais de que continuava a lê-la atentamente. Em ensaio de 1997, “Em torno do nosso imaginário”, voltaria a escrever sobre a autora: «De Agustina Bessa-Luís a Maria Gabriela Llansol a ficção moderna portuguesa desprendeu-se da poética – entre nós de frágil tradição – do realismo, sob todas as suas formas, e entregou-se ao mesmo tipo de pulsão que inunda a nossa poesia». Sobre a obra de Llansol dirá: «o seu conteúdo é a sua forma e a sua forma uma viagem num ficcional sem outro referente além de outros imaginários». E também, no final, ao comentar sobre a «vocação consciente ou inconscientemente antirrealista» do imaginário português, exemplificará como um dos «nossos dons e o nosso gosto de contornar a realidade» o da autora de Inquérito às Quatro confidências, «tomando a letra e o seu espaço onírico com o seu tempo infinitamente reversível, como a realidade mesma, rasurando com serena provocação a distância imaginária entre poesia e prosa» [A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia, Lisboa, Gradiva, 1999, p. 93-101].
Ainda no ano de 1997, entre as páginas capazes de traspassá-lo como flecha em pleno coração e ao mesmo tempo fazê-lo sentir-se em sua própria casa – a do imaginário em língua portuguesa –, incluem-se as do “enigma claro” de Maria Gabriela Llansol, como referiu em entrevista [Atlantis, Lisboa, 1997, p. 76].  Em outra entrevista concedida no ano da morte da escritora, ao responder sobre o autor em relação ao qual se sentia em dívida profunda, Lourenço citou o nome de Llansol, reafirmando a admiração por seu texto, “poesia da mais alta”, «sem se oferecer imediatamente com esse valor da poesia», e arriscando prever que ela será «o próximo grande mito literário português» [Ler, nº 72, Lisboa, Círculo de Leitores, Setembro de 2008, pp. 38-39].
Assim seja. Já começou a ser. Não no sentido do mito-Pessoa – da «projeção maiúscula que [...] paralisa, e [...] assombra», como dirá Llansol [Um falcão no punho, Lisboa, Rolim, p. 93] –, e sim no sentido do que significou para a rapariga que temia a impostura da língua a criada Maria Amélia – Maria Adélia, em Um beijo dado mais tarde [Lisboa, Rolim, 1990], e Engrácia, em Causa Amante: «A Engrácia chamava-lhe Mélito; agora, que aprendi a decompor as palavras compreendo que era ‘meu mito’ que lhe chamava». A Engrácia pediria, como quem envia uma carta ao legente ou lhe pede um beijo, «que pusesse os livros em circulação, [pois] livro escrito seria livro lido» [Lisboa, A Regra do Jogo, 1984, p. 77 e 94], no desejado e possível lugar real de escrita e leitura. Com a criada que lhe franqueava a biblioteca do pai e as portas do imaginário, protegendo-a com o seu amplo e generoso corpo de linguagem, a rapariga/Llansol/Témia aprendeu a abrir acesso a outras concepções de real: «Quando essa criada me contava estórias, e a criança, por ser muito inteligente, lhe respondia, ‘mas, Amélia, isto não existe’, ela dizia-lhe ‘menina, não diga que não existe, porque não sabe, procure onde está’» [“No Espaço Llansol”, Entrevista por João Mendes, Público, 28/06/1995, p. 4]. Esta lição de extrema claridade é fundamental para se começar a desfazer o seu “suposto hermetismo” [Llansol, Carta a Lourenço, 23/12/1988]. [MLS]

Uma Carta de Maria Gabriela Llansol






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Colares,
23 de Dezembro
de 1988

                                Caro amigo,

Junto lhe envio o meu texto da Sorbonne que pediu à Drª Maria Rolim. Faço-o com muita alegria, na lembrança do nosso encontro em Paris, e pela real amabilidade e apoio que, na altura, me manifestou.
Conheci-o com muito prazer. Tinha a certeza que, mais tarde ou cedo, nos havíamos de encontrar.
Soube também que a Drª Maria Rolim lhe solicitou que escrevesse para o Expresso uma recensão sobre “Da sebe ao ser”. Acho que é altura de deixar de ser vista como escritora hermética. Muito desse suposto hermetismo deve provir, creio eu, da falta de coordenadas de leitura. A maior parte dos portugueses cultos – ou assim ditos – não leram talvez o que eu li. O que não se viveu de idêntico, não se pode suprir, mas as bibliotecas podem ser progressivamente substituídas. Penso que o Eduardo poderá ajudar os outros a ler-me.
Desejo-lhe um bom Ano de 1989.

            Com um abraço
Muito amiga,

      MGab
      Llansol