quinta-feira, 4 de julho de 2013

Joaquim de Carvalho, Mestre de Coimbra

Capa de Diário de Coimbra no passado dia 23 de Junho 
na sequência da classificação como património mundial pela Unesco


Dia 4 de Julho é também Dia de Coimbra. E este ano a cidade universitária tem redobradas razões para festejar, dado que há poucas semanas foi classificada (em rigor, trata-se apenas da Universidade: Alta e Sofia) património da humanidade pela UNESCO. Num curioso e bem documentado artigo do Público, da autoria de Luís Miguel Queirós, fala-se de Uma interminável galeria de ilustres que, ao longo dos séculos, passaram pelos bancos da velha Universidade. Entre os nomes da passada centúria que merecem referência na interminável galeria conta-se «Joaquim de Carvalho (1892-1958), professor de Filosofia na UC e mestre de Eduardo Lourenço» (Público, 30/VI/2013, p. 8). Não deixa de ser um pouco injusto limitar a influência de Joaquim de Carvalho a um só discípulo (por mais destacado que este seja, claro), mas isso, de alguma forma, expressa a actual menor notoriedade do Mestre. À obra e ao magistério de Joaquim de Carvalho dedicou já Eduardo Lourenço um importante ensaio Joaquim de Carvalho e a Ideia de uma Filosofia Portuguesa que, escrito em 1992, foi apenas publicado em Heterodoxias, o Volume I das Obras Completas (Lisboa, 2011). No entanto, através de indicação atenta e amiga do Investigador do CEIS20 da Universidade de Coimbra, Paulo Archer, Ler Eduardo Lourenço tomou há dias conhecimento de um outro texto de Eduardo Lourenço, redigido por ocasião do falecimento de Joaquim de Carvalho, publicado inicialmente em O Jornal da Bahia (onde Eduardo Lourenço, nessa altura, residia e ensinava na Universidade local) e reimpresso em Diário de Coimbra a 5 de Novembro de 1958 (com chamada de capa e continuação na página 7). É esse texto que, em seguida, se reproduz na íntegra, na certeza de que o maior património de Coimbra e da sua Universidade foi, e continua a ser, constituído pelos ilustres que, desde Clavius e Pedro Nunes até Maria Helena da Rocha Pereira e ... Eduardo Lourenço (para citar os dois únicos estudantes vivos da lista de Luís Miguel Queirós) compõem uma sempre interminável galeria.

 Joaquim de Carvalho (1892-1958)

Na Morte do Prof. Joaquim de Carvalho*

A Universidade de Coimbra acaba de perder um dos seus grandes professores. O mundo da cultura portuguesa vê desaparecer com o Prof. Joaquim de Carvalho o mais bem informado estudioso dos múltiplos aspectos do nosso complexo cultural. Trabalhador prodigioso, dotado de privilegiada memória e grande poder analítico, desde muito jovem consagrou a sua atenção aos grandes problemas da cultura portuguesa e ao exame dos intricados laços que articulam essa cultura com o movimento geral do espírito europeu e mundial. Ao longo de uma intensa vida intelectual acumulou um saber variado e vastíssimo acerca das figuras e correntes de ideias definidoras do nosso perfil mental e moral. Os seus estudos sobre Antero de Quental tornaram-se clássicos no mundo de fala portuguesa. Os volumes consagrados aos séculos XV, XVI e XIX, objecto de particular atenção, são do conhecimento de todos que em Portugal e Brasil se ocupam dessas épocas. Mas os seus interesses ultrapassavam em muito a problemática específica desses períodos. Os variados trabalhos que teve tempo de publicar eram apenas degraus para a grande obra que no seu pensamento deveria abranger o conjunto da cultura nacional. Ninguém mais do que o ilustre Mestre possuía os dons e os instrumentos necessários para levar a cabo ou, pelo menos, desenhar, as linhas mestras de um tal edifício. Mas também poucos sabiam como essa tarefa excedia as forças de um só homem e sobretudo poucos se podiam aperceber do interior da própria construção como ela era actualmente inviável por extemporânea.
O desaparecimento do Prof. Joaquim de Carvalho deixa, contudo, nos seus admiradores e amigos, o sentimento exacto de uma certa falta irremediável, não só porque a obra realizada é uma pequena parte da que tinha entre mãos, como pelo facto de não permitir ainda entrever, ao menos, as linhas essenciais dessa obra mestra que não podia ser executada. Isto sim, profundamente o lamentarão sempre os que mais de perto conviveram com o Mestre falecido. Quanto à ausência efectiva de qualquer coisa do género História da Cultura Portuguesa achamos não dever lamentá-lo. No estado actual dos nossos conhecimentos teria sido uma empresa, em parte, fictícia. Só sob o ângulo literário é possível conceber e levar a bom fim um tão vasto desígnio. A mais profunda homenagem a prestar à honestidade intelectual e às responsabilidades de pensador e mestre de Joaquim de Carvalho é a de lhe agradecer não ter cedido à tentação normal das sínteses ilusórias e prematuras. Estamos certos que coisa alguma está mais próxima daquilo que constituiu a intenção basilar da sua actividade docente e historiográfica.
Mais dolorosas e melancólicas são as reflexões de que se acompanha a notícia da sua morte no espírito daqueles que sabem ter perdido na pessoa do Prof. Joaquim de Carvalho o mestre dos estudos de História da Filosofia em Portugal.
Neste domínio a sua falta far-se-á sentir por muitos anos. Em certo sentido não será possível mesmo repará-la. A enorme bibliografia organizada durante dezenas de anos para servir à História da nossa filosofia só no espírito do seu autor guardava aquela vida de relação e potencial referência mútua que são a essência de uma Biblioteca pessoal. No melhor dos casos, a sua riquíssima Livraria ficará à disposição de novos investigadores mas jamais saberemos conexões, hipóteses, filiações ficaram para sempre sepultas com o espírito de quem podia articulá-las. O nosso pesar é tanto mais profundo quanto é certo que essa tarefa, mais limitada que a de uma ambiciosa História da Cultura estava ao alcance da sua capacidade material de trabalho, do seu saber e da sua vontade. Todos quantos se interessam pela história das ideias filosóficas em Portugal sabem que ninguém melhor que o autor de Leão Hebreu, filósofo, António de Gouveia e o Aristotelismo da Renascença, Oróbio de Castro e o Espinosismo, assim como de numerosos estudos dispersos por Revistas ou publicações que marcaram data estava apto para nos dar a larga visão do pensamento filosófico português que tão essencial nos seria para melhor entendimento de nós mesmos.
Na ausência do grande estudo que devia rematar o esforço de uma vida inteira ficam-nos essas obras, todas elas exemplo notável de método e clareza expositiva, aquele método e invulgar clareza que os seus alunos não podem esquecer.
Na notícia da sua morte não foi para nós inesperada: da visita que lhe fizéramos, em passagem rápida por Portugal, poucas esperanças tínhamos trazido, apesar do optimismo doloroso do ilustre doente absorvido, como sempre, na evocação de um sem número de projectos e obras em vias de acabamento. A última a que se referiu, além de uma História da Educação, que lhe roubou mais de um ano de trabalho seguido, tinha por sujeito António de Vieira.
O Brasil e as coisas brasileiras ocuparam muito a sua atenção nos últimos tempos, sobretudo depois da sua vinda a estas terras, onde deixou a forte impressão de expositor notável e grande professor universitário, que na verdade era.
A sua obra e personalidade eram-nos demasiado familiares para que possamos julgá-las já com a necessária objectividade. Todavia, para não ceder ao pathos emotivo que aqui, tão longe da Coimbra onde tivemos a honra de ser seu aluno só podia ser assunto estritamente privado, esforçámo-nos por salientar dessa personalidade algumas incidências intelectuais e o lugar delas na cultura portuguesa contemporânea. De certo, o ilustre Mestre nos perdoaria que disfarcemos a nossa reacção afectiva sob uma consideração, tanto quanto possível serena daquelas virtudes que no professor e no pensador ultrapassavam o âmbito do homem e do amigo. São elas que sobrevivem numa Obra com lugar de relevo no mundo daquela Cultura Portuguesa que foi objecto dela e preocupação constante de quem lhe consagrou com constância e profundidade as melhores horas da sua vida.
[Salvador da Bahia, 1 de Novembro de 1958]

 
Estátua de Joaquim de Carvalho na Figueira da Foz, cidade onde nasceu.





* Diário de Coimbra, 5/XI/1958, pp. 1 e 7.