cansa-nos o verão (Gastão Cruz, Outro Nome, 1965)
E se escolher fosse outro nome para ler? Leitor de poesia como poucos, Eduardo Lourenço escolhe, como é óbvio, os poemas sobre os quais escreve. Costuma dizer que na sua vida há poucas escolhas. Pelo menos em duas ocasiões, curiosamente no mesmo ano, essa escolha assumiu a forma de livro. Em 2006, a revista Visão e o Jornal de Letras, Artes e Ideias pediram ao ensaísta que organizasse uma Antologia Poética de Fernando Pessoa. Trata-se de uma edição importante a vários títulos, desde logo porque ajuda a perceber alguns aspectos da exegese que o ensaísta realiza do universo pessoano. Quase ao mesmo tempo, o jornal Público organizou uma colecção a que chamou os poemas da minha vida, pedindo a colaboração de vários nomes, alguns deles bastante inesperados, como é o caso de Jerónimo de Sousa, António Ramalho Eanes ou Miguel Cadilhe. Menos surpreendente terá sido o convite a nomes Urbano Tavares Rodrigues, Maria Alzira Seixo, Vasco Graça Moura ou até Maria Barroso. Coube a Eduardo Lourenço a organização do número vinte e um de os poemas da minha vida.
Que poemas e poetas foram incluídos nos poemas da vida de Eduardo Lourenço? Para além do verso quase mítico «O filho do Zeferino foi a casa dos filhos da mãe do Zebedeu» que o jovem aluno da escola primária de São Pedro do Rio Seco descobriu no manual de leitura e de que Eduardo Lourenço fala no prefácio da antologia (cf.http://leduardolourenco.blogspot.pt/2011/06/nao-sei-que-poema-entrou-como-um-ladrao.html), são convocados nomes como Petrarca (traduzido por Vasco Graça Moura), Luís de Camões, S. João da Cruz (por Jorge de Sena), Novalis (por Fiama Hasse Pais Brandão), Baudelaire (por Jorge de Sena e por Fernando Pinto do Amaral), Antero de Quental, Cesário Verde, Camilo Pessanha, António Machado (por José Bento), Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, José Régio, Miguel Torga, Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carlos de Oliveira, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Alexandre O'Neill, António Ramos Rosa, António Osório, Ruy Belo, Pedro Tamen, Armando Silva Carvalho, Gastão Cruz, Vasco Graça Moura, Al Berto, Nuno Júdice e Paulo Teixeira.
No limite, cada poeta e talvez cada poema escolhido justificaria uma análise em pormenor. Por exemplo, é curioso como, tendo reunido quinze textos de Fernando Pessoa para os poemas da minha vida, o primeiro dessa lista não conste, por sua vez, da Antologia Poética de Fernando Pessoa. Haverá razões para aquilo que, em rigor, não é necessariamente uma incoerência? Eis um assunto que talvez mereça a pena ser estudado.
Um outro caso é Gastão Cruz, poeta que aparece com duas canções em poemas da vida de Eduardo Lourenço. Trata-se da primeira e da última (a décima) das dez que compõem Outro Nome. Uma pergunta surge: porquê dois textos de um mesmo livro, tratando-se a obra deste poeta um conjunto de livros que, já em 2006, excedia os vinte títulos? Claro que Outro Nome não é um livro qualquer de Gastão Cruz, supondo que algum deles o seja. Mas é um livro para o qual, no caso de poder ser explicado (e sobre esta possibilidade as dúvidas são, pelo menos, infinitas), estas palavras, recentes e iluminadoras, de Pedro Eiras deveriam, com certeza, ser aproveitadas: «(…) Outro Nome é denso. As palavras são revistas em incansáveis jogos de permutas: tornam-se outras, sendo as mesmas (efeito perturbador: o leitor começar a ler, nas palavras presentes, a repetição das palavras repetidas; fogo, areias, vidraças, lisboa, nome, canção são palavras que se tornam esmagadoras, pela memória que obrigam o leitor a gerir: pois o leitor ouve, sob as palavras, os ecos das palavras já lidas). Multiplicidade e unidade: mesmo as canções, dez como em Camões, são só uma, se lembrarmos o subtítulo original “Poema em dez canções” (…). Um único, extenso, poema. Únicas, extensas, palavras» (Pedro Eiras, “A lição do rigor sobre Outro Nome”, Luis Maffei; Pedro Eiras, A Vida Repercutida – Uma Leitura da Poesia de Gastão Cruz, Lisboa, Esfera do Caos, 2012, p. 46).
A esta enumeração de únicas e extensas palavras furtou-se uma que joga papel decisivo na canção décima: neve. Ou porventura dever-se-ia dizer: la neige de René Char. É que a epígrafe do poeta francês, tantas vezes citado por Eduardo Lourenço noutras ocasiões, faz parte integral da canção que encerra Outro Nome. Desde a edição original, saída em 1965. Nem sempre será assim, no entanto. Por exemplo, em Poesia 1961-1981 a epígrafe não aparece, como se tivesse sido enterrada no “fogo da paz falsa” das areias do verão. Na mais recente versão conhecida, inserida em Os Poemas (Assírio & Alvim, 2009, p. 85), o leitor encontra-a de novo. Ora, também da leitura que Eduardo Lourenço faz desta belíssima canção de Gastão Cruz, l’inexorable neige de Char não foi escolhida. Ou, se escolher for outro nome para ler, poder-se-á perguntar: não foi a neve lida por Eduardo Lourenço?
Um outro caso é Gastão Cruz, poeta que aparece com duas canções em poemas da vida de Eduardo Lourenço. Trata-se da primeira e da última (a décima) das dez que compõem Outro Nome. Uma pergunta surge: porquê dois textos de um mesmo livro, tratando-se a obra deste poeta um conjunto de livros que, já em 2006, excedia os vinte títulos? Claro que Outro Nome não é um livro qualquer de Gastão Cruz, supondo que algum deles o seja. Mas é um livro para o qual, no caso de poder ser explicado (e sobre esta possibilidade as dúvidas são, pelo menos, infinitas), estas palavras, recentes e iluminadoras, de Pedro Eiras deveriam, com certeza, ser aproveitadas: «(…) Outro Nome é denso. As palavras são revistas em incansáveis jogos de permutas: tornam-se outras, sendo as mesmas (efeito perturbador: o leitor começar a ler, nas palavras presentes, a repetição das palavras repetidas; fogo, areias, vidraças, lisboa, nome, canção são palavras que se tornam esmagadoras, pela memória que obrigam o leitor a gerir: pois o leitor ouve, sob as palavras, os ecos das palavras já lidas). Multiplicidade e unidade: mesmo as canções, dez como em Camões, são só uma, se lembrarmos o subtítulo original “Poema em dez canções” (…). Um único, extenso, poema. Únicas, extensas, palavras» (Pedro Eiras, “A lição do rigor sobre Outro Nome”, Luis Maffei; Pedro Eiras, A Vida Repercutida – Uma Leitura da Poesia de Gastão Cruz, Lisboa, Esfera do Caos, 2012, p. 46).
A esta enumeração de únicas e extensas palavras furtou-se uma que joga papel decisivo na canção décima: neve. Ou porventura dever-se-ia dizer: la neige de René Char. É que a epígrafe do poeta francês, tantas vezes citado por Eduardo Lourenço noutras ocasiões, faz parte integral da canção que encerra Outro Nome. Desde a edição original, saída em 1965. Nem sempre será assim, no entanto. Por exemplo, em Poesia 1961-1981 a epígrafe não aparece, como se tivesse sido enterrada no “fogo da paz falsa” das areias do verão. Na mais recente versão conhecida, inserida em Os Poemas (Assírio & Alvim, 2009, p. 85), o leitor encontra-a de novo. Ora, também da leitura que Eduardo Lourenço faz desta belíssima canção de Gastão Cruz, l’inexorable neige de Char não foi escolhida. Ou, se escolher for outro nome para ler, poder-se-á perguntar: não foi a neve lida por Eduardo Lourenço?