Augusto Abelaira (Ançã, 1926 - Lisboa, 2003) |
Da ubiquidade*
Há 20 anos – ou até há dez – a morte de autor de A Cidade das Flores, referência primaveril dos nossos anos de silêncio, teria suscitado, além da ritual tristeza, uma forte emoção cultural. Merecida. Parece não ter sido o caso. Como se ninguém – nem o “povo de esquerda”, a que ele emprestou durante tantos anos a sua atenção crítica e paixão ética – não soubesse já muito bem quem “nos” morria com Augusto Abelaira.
É verdade que o tempo da sua disparição, o do Portugal que o vê morrer sem adivinhar quem lhe morre, em quase nada se parece com o país cinzento e tutelado onde a sua obra surgiu. E de que foi uma espécie de cadinho onde todas as perplexidades de uma situação histórica, ideológica, societal, condenada a viver sob o modo críptico da alusão, da virtualidade, eram uma saída alegórica por contra de um futuro sem saída. Todas as saídas possíveis do que não tinha saída – e não apenas em termos de politica e de ideologia – encontraram na obra de Augusto Abelaira a sua expressão mais refinada e sinuosa. Se alguém foi, entre nós, o romancista desse tal “fascismo que nunca existiu” e nos serviu da vida real que nos condicionava os pensamentos e a respiração, foi o autor de Sem Tecto Entre Ruínas.
Como respirar quando a atmosfera era tão rarefeita como nos parecia então? Imaginando cenários para tempos futuros, duvidando deles, oferecendo-se quase ludicamente ao labirinto de uma realidade que era mais ficcional do que todas as ficções. Iluminista e racionalista por convicção, céptico por temperamento, Augusto Abelaira fez da ubiquidade impossível o seu terreno de eleição. Nada era o que parecia. Tudo era ou tudo podia ser outra coisa. O inaceitável e o desejável, o mundo que o sufocava e o mundo que o libertaria se fosse como o sonhava. Não era um fanático, era só um apaixonado que mesmo ao mais consolador dos sonhos – e nenhum maior do que a paixão – não podia entregar o seu apetite quase patológico de lucidez.
Um século antes, teria sido um fiel adepto, se a expressão não fosse contraditória, de uma filosofia então célebre, a do “como se...”, jamais o amante das certezas que em si repousam ou sobre si se fecham.
Profundamente “hamletiano”, a tragédia estava-lhe vedada, era a sua face sthendaliana, o seu lado Fabrizio del Dongo conservando-se paradoxalmente distraído e disponível no meio do Waterloo da vida. Disse-me um dia que a única questão que o interessava era a do Tempo. Não a insolúvel ou vã questão “metafísica” do Tempo, apenas a das visagens e miragens que ele assume, a expressão musical dele, como no seu muito amado Mozart. O Mozart de Cosi Fan Tutte e de Dom João. Mas também de todos os Dons Joões. Do de Lenau, sobretudo, velado de além túmulo pelas suas criaturas amadas, traídas mas nunca realmente abandonadas a que a sua ficção consagrou a única vigília sem cansaço nem remorso.
* O texto de Eduardo Lourenço que aqui se reproduz foi publicado em Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 9/VII/2003, p. 11. Foi redigido em Vence, a 7 de Julho de 2003, ou seja, poucos dias depois do falecimento de Augusto Abelaira (Ançã, 18/III/1926 - Lisboa, 4/VII/2003). Infelizmente, dez anos após a morte do autor de romances tão marcantes como A Cidade das Flores, Bolor, Sem Tecto Entre Ruínas ou Outrora, Agora, a sua obra parece que continua a não suscitar o interesse que indiscutivelmente justifica. Professor de Filosofia, Abelaira foi também um notável cronista. Na esperança que a sua obra não seja apenas escrita na água, Ler Eduardo Lourenço recorda aqui a sentida homenagem do ensaísta ao Amigo e ao Escritor.