segunda-feira, 14 de março de 2011

Para um Tempo da Música e uma Música do Tempo


por Barbara Aniello






Folhas avulsas, amarelecidas pelo tempo, agendas de bolso minúsculas, páginas soltas ou agrafadas, por vezes numeradas, outras não, encontradas em forma beneditina entre as páginas de livros de Estética e de Filosofia, ou recolhidas em pequenas caixas frágeis de papelão branco: são migalhas raras do que teria pertencido a um diário “perdido” de Eduardo Lourenço, mas que, entre tantos papéis, pacientemente arrumados, inventariados e catalogados por João Nuno Alçada, começaram agora a ser reveladas. É a ele que devo a descoberta, no acervo do filósofo, dos escritos inéditos dedicados à música, foi ele quem me encorajou na tarefa da transcrição, trabalho minucioso e por vezes desconsolado, numa luta diária para decifrar palavras apagadas e incompreensíveis, a partir duma grafia difícil, miúda e fascinante.

Escritas entre 1948 e 2006, as 140 reflexões de Eduardo Lourenço sobre a música, quase todas inéditas, acompanham o inteiro arco temporal da sua carreira, abrangendo um leque vastíssimo de obras e autores, do gregoriano até à música serial, de Josquin de Prés a Stockhausen, de Bach a Bartók.

Auto-retratado na intimidade do seu escritório, nas viagens solitárias de carro, nas salas de concerto, nos teatros lotados, lugares privilegiados da sua audição, o autor revela um lado totalmente secreto da sua escrita.

Inicialmente relutante, Eduardo Lourenço não queria tornar público um material tão marginal e fragmentado, declarando-se um simples amador. Todavia não é o seu rigor musicológico que se pretende aqui testemunhar, mas o lado intuitivo, agudo e iluminante de um pensador que respondeu por completo a todos os campos da sua vocação estética. Apesar de não ter formação específica na área, o escritor alcança a essência do discurso musical, traduzindo-o por vezes em forma de poesia, outras de ensaio, de fragmento, de aforismo anotado à margem de outras especulações.

Emblemático é o exemplo aqui apresentado, onde a citação musical se torna pretexto, centelha primordial, a partir da qual os campos da arte, da literatura, da estética, da filosofia se incendeiam, sem renunciar à glosa irónica e auto-irónica do final.

Rendido ao projecto, Eduardo Lourenço escolheu intitular Tempo da Música, Música do Tempo o volume que fará parte das Obras Completas editadas pela Fundação Gulbenkian. Música como “pretexto” no sentido etimológico do termo, “encobrindo” o verdadeiro Tema, fio condutor de toda a obra lourenciana: o Tempo.



Henry Barraud (1900-1997)-




                                         Desintrodução à estética.

1 de Janeiro de1965



Obra de Henry Barraud. Suponhamos o auditor desprovido de consciência histórico-musical. Hipótese-limite mas que é o caso digamos do auditor incapaz por exemplo de distinguir Josquin des Prés de Rameau ou Monteverdi de Beethoven, ou Beethoven de Schönberg etc. Nessa hipótese ouvindo esta música de Barraud, prestando-lhe atenção ele será invadido por uma arquitectura sonora que lhe parecerá des-concertante e sobretudo será submetido a uma impressão caótica, angustiada, dilacerante e dilacerada que por comparação com o seu fundo próprio de melodia clássica lhe poderá parecer de uma total novidade, de uma originalidade poderosa. Dir-se-á que esse auditor não compreendeu essa música. Mas a compreensão da música não se esgota na absorção dela, não reside toda no conjunto de emoções, pensamentos, que faz nascer em nós? Como a da pintura na sua visão? De um certo modo sim e contudo mesmo aceitando-o o caso de encontro música-auditor ou pintura-espectador permanece e até se complica. Quem olhar “Guernica” por exemplo ou as “Nympheas” ou “Suzanne et les vieillards”, digo, quem olha detidamente tais quadros vê aparentemente tudo quanto há a ver neles. A mesma coisa para quem escuta uma música jamais ouvida. Todavia esse ver é de algum modo cego e esse ouvir, mudo, pela simples razão que quadro e música são histórias, são o lugar onde de um diálogo para entender o qual é literalmente exacto dizer que é necessário convocar o passado de onde emerge, o presente em que nasce e o futuro que transporta. Assim a perspectiva puramente fenomenológica só é fecunda quando a consciência em que a redução se dá está já de “plein pied” com o objecto a reduzir. Não é só o juízo que é impossível sem o halo que situando a obra oferece ao mesmo tempo os termos de comparação possível, sem os quais julgar é acto de vontade e não de entendimento, mas é a compreensão mesma que não pode efectuar-se. Colocado diante de “Guernica” o homem que nunca ouviu falar da guerra de Espanha que desconhece o passado recente da pintura (cubismo-expressionismo) que vê ele, vendo-a? A Zona de um encontro puro, virginal, entre uma consciência intemporal e a pura presença da obra é o encontro de dois espelhos se reenviando sem fim a nula imagem que um ao outro se reenviam. A História sem Fenomenologia é cega, a Fenomenologia sem História é vazia. Da análise fenomenológica só podemos extrair maravilhosos coelhos brancos com a condição de lá os termos postos antes ou de os levar nos bolsos como os bons prestidigitadores.