quinta-feira, 3 de março de 2011

5 cartas de Snu Abecassis ou para uma genealogia do Labirinto

Será excessivo considerar Snu Abecassis (née Ebba Merete Seidenfaden, 1940-1980) uma personagem mítica na vida portuguesa contemporânea?  Talvez não. A sua estúpida morte em Camarate, num acidente de avião que também vitimou, entre outros, Francisco Sá Carneiro, Primeiro-Ministro e seu companheiro numa relação amorosa que provocou celeuma num país de costumes conservadores, e Adelino Amaro da Costa, ajudou a conferir à sua figura um estatuto que evoca as tragédias gregas. Aliás, a literatura e até o cinema depressa se aperceberam disso mesmo.
Snu e Sá Carneiro

Na verdade já muito se escreveu sobre Snu Abecassis. Cf. por exemplo o capítulo que lhe é dedicado no recente e muito documentado Carneiro de Miguel Pinheiro (Lisboa, Esfera dos Livros, 2010, pp. 437-466). Mas Ler Eduardo Lourenço gostaria nesta circunstância de homenagear a editora de origem dinamarquesa, ao mesmo tempo exigente e dialogante, que teve um papel particularmente decisivo na génese de um livro (título incluído), O Labirinto da Saudade, que transformou o seu autor  num dos escritores portugueses mais citados ou pelo menos mais referidos.  Para isso recorremos a um conjunto de cinco cartas (existente no Acervo de Eduardo Lourenço) que revelam o modo atento e perspicaz como Snu, que exercia importantes funções directivas nas Publicações Dom Quixote (em Lisboa), acompanhou toda a construção do Labirinto.
Carta de 15 de Março de 1978


Registe-se nesta primeira carta dois pontos que parecem essenciais. Em primeiro lugar, a editora afirma que leu «com muito interesse o manuscrito» com o título "Psicanálise Mítica do Destino Português" e, por isso, julga dever publicá-lo. Contudo, e para concretizar essa sua intenção, Snu não deixa de alertar Eduardo Lourenço para dois pequenos problemas. Por um lado, pretende «saber qual é o panorama no que respeita a outros livros seus no prelo em Portugal». E explica porquê: «Se bem me lembro, havia vários em andamento, mas de cuja evolução não estou, evidentemente, a par». Quem conhece minimamente o espólio documental de Eduardo Lourenço assegura que são incontáveis os projectos editoriais do ensaísta, alguns deles não indo além de uma folha de capa manuscrita. Outros já com um índice mais ou menos elaborado. Muitos ainda bastante mais perto do acabamento.
Por outro lado, o material manuscrito que chegou aos escritórios da Rua Luciano Cordeiro vinha incompleto: «acaba na página 40 e falta-nos o restante». Ler Eduardo Lourenço regista o ocorrido, embora confesse que esse facto não o deixa totalmente surpreendido.

Carta de 14 de Abril de 1978

Nesta segunda carta, Snu começa por dizer que se trata de «umas linhas com urgência». O projecto editorial parece não avançar: «a situação não está muito clara». Entre a tábua de matérias (que a seguir se reproduz) e o material existente na Dom Quixote não havia uma total coincindência. Enfim, nada a que os editores de Eduardo Lourenço não estejam propriamente acostumados.


No entanto, é importante sublinhar por que motivo Snu considera que a publicação do futuro livro era tão  urgente. A obra deveria sair, no seu entender, antes do Verão porque essa era «o momento em que [o] público ainda retém uma certa curiosidade pelos "porquê" da situação do país». No Outono, talvez fosse já demasiado tarde, pois a gravidade da situação poderia ser nessa altura de uma dimensão tal que aos leitores nem o porquê, nem o como suscitasse o menor interesse. Descontando o que possa haver aqui de retórica empresarial por parte da editora, é curioso verificar como em 1978 ainda se acreditava no impacte público dos livros e, em particular, de livros de ensaios de pendor filosófico. E daí uma das frases finais da missiva: «tenha isto em mente quando se irrita com a minha insistência na resolução rápida deste trabalho». De facto, este último aviso surtiu o efeito desejado como seguidamente se verá.

Carta de 12 de Maio de 1978


Tendo sido forçada a ausentar-se de Lisboa por algumas semanas, Snu quando regressa depara-se com várias cartas de Eduardo Lourenço que, desta forma, correspondeu ao apelo da mensagem anterior. O livro não estava ainda completo («falta receber a revisão do prefácio, que esperamos a todo o momento»), mas a editora revela-se bem mais optimista esperando lançar a obra em Junho, o que, realmente veio a suceder. Assinale-se ainda o contentamento de Snu pela solução encontrada para a capa do livro, pois considera que esse problema foi muito bem resolvido. Ler Eduardo Lourenço não discorda desta opção estética, mas a verdade é que as capas das ulteriores edições de O Labirinto da Saudade foram diferentes.

capa da 1ª edição (Junho de 1978)
capa da 2ª edição (Junho de 1982)

(capa de uma das edições mais recentes)

 Mais importante ainda é naturalmente a mudança do título do livro, agora baptizado O Labirinto da Saudade. Snu realça que o primeiro nome poderia «dar a entender que havia pretensões reais de psicanálise no sentido científico». Ora, já que não era disso que se tratava, importava seguir o princípio editorial de «evitar sempre que possível as construções que se prestam a mais que uma leitura». Como se sabe, o termo psicanálise acabou por surgir como sub-título e, mesmo em segundo plano, veio a provocar numerosas e contraditórias leituras, algumas delas procurando descredibilizar as teses de Eduardo Lourenço a partir da (suposta) insuficiência epistemológica da psicanálise, como foi o caso de alguns representantes de um certo e inesperado positivismo sociológico. Mas, claro, isso são assuntos para discutir em outras ocasiões...
O livro chamou-se mesmo O Labirinto da Saudade e este título passou a ser uma espécie de senha para aceder à obra do Eduardo Lourenço inúmeras vezes apresentado como o autor do Labirinto. Ora, a escolha do nome não terá sido inteiramente feliz. Por um lado, porque a referência à saudade pode prestar-se a «mais que uma leitura». Por outro, porque o título  não pode deixar de remeter para a já então publicada obra do futuro Prémio Nobel, o mexicano Octavio Paz, que se chamava precisamente El Labirinto de la Soledad, expressão que, não sendo a mesma, é no entanto quase homófona.




Onésimo Teotónio de Almeida, numa nota de rodapé ao seu ensaio "Em busca de clarificação do conceito de Identidade cultural – O caso açoriano como cobaia", relata o seguinte: «Eduardo Lourenço contou-me que deu ao seu livro o título O Labirinto da Saudade sem se aperceber de qualquer ligação com o livro de Paz. Quando um dia deu pela semelhança, telefonou ao editor para alterá-lo, mas o livro já estava impresso». Não se duvida que o ensaísta tenha telefonado para o escritório da Rua Luciano Cordeiro, mas não há no Acervo nenhuma carta de Snu acerca deste assunto. Como terá reagido a este telefonema a editora a quem alguns amigos chamavam a princesa do gelo? Não parece ser muito difícil adivinhar.

Carta de 18 de Setembro de 1979
O livro acabou por sair em Junho de 1978. Porém, e apesar de algum eco nas secções de crítica especializada, a primeira edição de O Labirinto da Saudade não foi propriamente um êxito de vendas. Aliás, Ler Eduardo Lourenço sempre estranhou por que motivo a 2ª edição  apenas foi posta à venda quatro anos depois. Estas «linhas não muito optimistas» ajudam a perceber a razão do hiato. Para além da crise económica que o país atravessava, a verdade é que os leitores não foram sensíveis a esta reflexão acerca do porquê da nossa situação política e social. E assim a editora tinha ainda em stock 300 exemplares por colocar. Tal facto invalidava a reedição do Labirinto e também de Pessoa Revisitado (cf. texto alusivo neste blog). Se em relação a este último livro Eduardo Lourenço acabou por publicá-lo em 1981 noutra casa editorial, o Labirinto iniciaria depois uma auspiciosa carreira, tendo ultrapassado a dezena de edições.

Carta de  21 de Abril de 1980

A última carta, que Snu (decerto ausente em intensa actividade política) apenas pôde ditar, é um texto de dolorosa despedida. Queixando-se mais uma vez das dificuldades económicas do país e do crescente desinteresse do público por textos ensaísticos, Snu conclui o escrito com amargura dizendo «temos viver dentro da realidade». Infelizmente, essa realidade durou apenas alguns meses, pois a 4 Dezembro a princesa do gelo partiu para aquela que seria a última viagem, não podendo assistir à consagração de um Labirinto que, com tanta determinação e sensibilidade, ajudou a construir.