sexta-feira, 11 de março de 2011

Os portugueses como metáfora de escravidão e humanidade ou considerações (des)enrascadas à volta de um texto cortado pela censura

por Teresa Filipe

A canção Parva Que Sou, do grupo “Deolinda”, assume subitamente carácter de hino da geração à rasca.
Cartaz de “Homens da Luta”, os polémicos vencedores do Festival da Canção 2011, com a música A Luta é Alegria.

Dois episódios mediáticos recentes puseram o país a perguntar-se se a canção ainda é uma arma. Pelo menos, este ainda admite que já foi e terá deixado de o ser. A questão que se coloca então é a de saber se pode voltar a ser o que já foi. No país da revolução cantada discute-se (ou finge-se discutir, mas isso já não é pouco) o poder da canção e da rua. Não será isso uma maneira de discutir a possibilidade mesma da nossa democracia, ou seja, do poder real do povo? Sim, porque pode estar fora de moda falar de povo, mas que ele existe, existe. E continua a fazer sentido falar em elites, também. O que está em causa é a capacidade mobilizadora da palavra, a crença no poder da reivindicação, a crença de que é possível mudarmos. Mudarmo-nos. Em vez de permitir apaticamente uma sociedade sub-humana, exigir um novo metabolismo social.

Tudo isto nos remete, como não poderia deixar de ser, para o único momento da nossa pálida história contemporânea, em que o povo, saindo às ruas a cantar, se fez ouvir e mudou o estado de coisas: mudou o nosso mundo.

Em 1973, a pretexto de um filme de Alain Jessua, Tratamento de Choque (com interpretações de Alain Delon e da muito recentemente desaparecida Annie Girardot), Eduardo Lourenço escreve um texto para o Expresso, que, tendo sido inicialmente censurado, foi publicado em Maio do ano seguinte, já depois da Revolução. Segundo Eduardo Lourenço, o filme é uma sátira, pouco conseguida, à sociedade burguesa e à sua complacência para com os subprodutos humanos da sua tão desejada sociedade de consumo. 



Revista de Expresso, Lisboa, 4/V/1974, p. 31

Mas vai mais além. Tratamento de Choque não retrata apenas o modo como a sociedade burguesa cria sub-humanos, ou como os emigrantes pobres (e neste caso, poderíamos dizer, portugueses ou não) são o subproduto de uma sociedade burguesa, capitalista, e de consumo selvagem. Jessua elege o emigrante português como imagem daquele que vive alienado a sua condição. (Neste ponto, poderíamos falar da própria condição de emigrado que continua, aqui fatalmente, a perpetuar-se nesta imagem de alienação; basta para isso registar a actual discussão acerca da falência das sociedades multiculturais e a dificuldade em encontrar compromissos.) Deixa-se oprimir, resignado, como se para isso estivesse fadado.

«Bastou-lhe captar na mais quotidiana realidade francesa onde já é impossível não tropeçar neles (como “sangue” dela que são) a sua gentileza imemorial, o seu gosto de servir, a sua fabulosa capacidade de aguentar de que já Garrett dizia que nem nos degraus do patíbulo se desmentia, a sua doçura quase feminina sob o machismo impenitente, para lhes confiar com intuição infalível, o triste e sublime papel de representar no seu rosto emigrado, a resignação e predestinação míticas de que o Escravo é feito.»

Até que o escravo perceba que é ele que alimenta o seu dono. Para isso é preciso que ele se compreenda como ser livre. Nem «santos, heróis e navegadores», nem «pedreiros, caiadores e operários reais», mas como um ser singular, cheio de possibilidades individuais, sem qualquer dívida mítica a esta ou aquela imagem estereotipada. Para que cada um se possa descobrir e assumir individualmente, para que como sociedade criemos efectivamente as condições necessárias para que cada um viva aquilo que acredita em vez de se perpetuar numa imagem simbolicamente humana, é necessária essa liberdade que no nosso país nasceu na rua sob a forma de uma cantiga. Para viver é necessário esquecer, e neste caso, lembrar. Para o bem ou para o mal, somos herdeiros dessa canção. Foi possível quebrar o silêncio, sair à rua e desfazer as evidências. Foi possível a um povo assumir o seu destino quando o tempo era de mentira, de ilusão, de censura (e a pior censura é a auto-censura, diz o homem da luta).

«É a eles mesmos (nós) que cumpre empreender e ajudar a destruir essa máquina infernal para que, desta vez como no filme, não continue a devorar-nos sem fim.»

Como no filme, ou como na canção.