quinta-feira, 24 de março de 2011

Fórmula 1, avarias & amolgadelas

Ler Eduardo Lourenço confessa-se pouco adepto do chamado desporto automóvel. Ainda assim, não ignora que hoje vai para a estrada uma importante competição em Portugal. Talvez seja este um pretexto para falar das relações entre os automóveis e Eduardo Lourenço. Não, que se saiba (mas convém usar alguma prudência metodológica nesta matéria), o ensaísta não escreveu sobre rallies, embora, de acordo com a preciosa informação de Afonso Praça, que o visitou em Vence, seja apreciador das transmissões televisivas de Monza ou Nurburgring. «Além da leitura, é um grande entusiasta de televisão, quase um viciado, como reconhece. Começa a matar o vício à hora do almoço, mas é à noite (nas noites que não dedica à escrita) que passa mais tempo diante do televisor. Vê de tudo um pouco. Mas sobretudo muita informação, programas culturais e desporto, com destaque para futebol, ténis e Fórmula 1» (Afonso Praça, “Um beirão na Provença”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 667, Lisboa, 8/V/1996, p. 10).




Porquê, então, falar do tema Eduardo Lourenço e os automóveis? Antes de mais para evocar um relato de Eduardo Prado Coelho (publicado pela primeira vez num dossier do Jornal do Fundão) sobre uma famosa viagem que ambos fizeram e que é, a vários títulos, reveladora. Se não, veja-se. «Há muitos anos já, logo a seguir a Maio de 68, viajei com ele de Lisboa para Nice (eu ficaria por Aix-en-Provence, onde nessa altura era leitor de Português). Aprendi muito nessa viagem. Porque bastava dar um tema, um tópico, uma referência, a ponta esquiva de uma ideia, para que Eduardo Lourenço começasse a pensar em voz alta. E é muito bonito observar alguém que pensa em voz alta – e a gente a ver não apenas o que ele pensa, mas o espectáculo de pensar, a música das ideias – o mar agitando-se a si mesmo, numa intriga de luas e marés. Falámos de Glauber Rocha, mas tam­bém do homem que chegava à lua (“o homem nunca deixou de fazer aquilo que tecnicamente pode fazer” – frase mais ter­rível do que então me pareceu). A meio do caminho, um jor­nal anunciou-me a morte de Lucien Goldman. Percebi que a dialéctica de Goldman era demasiado a dialéctica do trágico, e não o trágico da dialéctica (que sempre foi o grande tema, o mar absoluto, de Eduardo Lourenço). De vez em quando, o carro avariava, punha-se aos soluços convulsivos, parecia que a alma se lhe ia arrancar das entranhas. Procurávamos uma garagem, ouvíamos a explicação do perito com religioso respeito (quase sempre ele começava por nos dizer como o anterior perito tinha sido um vigarista e um aldrabão, coisa para levar ao desespero qualquer racionalista dogmático). Mas, quando o técnico estava de costas, Eduardo Lourenço afagava discretamente o capot do carro e murmurava com ternura: “Vá lá, vamos lá ver se agora te portas bem, vais ser um menino bonito”. E comentava para mim: “Devemos jogar em todas as hipóteses, a científica e a mágica.” » (Eduardo Prado Coelho, O Cálculo das Sombras, Porto, Edições ASA, 1997, pp. 121-122).


Neste capítulo das viagens conversadas de automóvel merece também referência o magnífico testemunho de Henrique Diniz da Gama (cf. “Eduardo: o meu amigo”, AAVV, Cartografia Imaginária. Dos Poetas e Amigos, Org. de Maria Manuel Baptista, Maia, Ver o Verso, 2008, pp. 77-85).
Mas, apesar do gosto pela antropomorfização dos automóveis, sobretudo em momentos de aflição mecânica, não se pode dizer que Eduardo Lourenço tenha a perícia automobilística de, por exemplo, um ... Manoel de Oliveira (que foi, como se sabe, um exímio piloto desportivo). Pelo menos a julgar pelo testemunho de alguns observadores próximos do ensaísta. Por exemplo, Vergílio Ferreira refere-se a isso, num comentário quase malicioso escrito a propósito de uma das muitas visitas que o amigo lhe fazia em Fontanelas: «O Eduardo Lourenço esteve aqui esta manhã. Cavaco rápido e sintético sobre mexericos literários (o caso do Pacheco com início no último Popular), tricas políticas (o regateio do Torga de uma adesão ao Eanes), e, por fim, num desvio por largo, o incêndio da Polónia. Admitimos ser improvável que a URSS faça de bombeiro. Mas não há tempo para especularmos com mais vagar: Eduardo tem almoço em Belém. Muda para fato com mais cerimónia, parte de carro com alguma aceleração. Tem algumas esmurradelas. O carro.» (Vergílio Ferreira, Conta-Corrente 1980-1981, Vol. III, Lisboa, Bertrand, 1983, p. 121).
Anos mais tarde, de novo Afonso Praça. Na inesperada sequência de uma descrição da antiga casa de Vence de Eduardo Lourenço, surgem novos elementos sobre este tema automobilístico. «A primitiva garagem foi transformada em escritório e inundada de livros. Num primeiro instante, a mulher, Annie, pensou que o problema dos livros estava resolvido. Mas não. A nova garagem, que foi acrescentada à casa, acabou também por ceder lugar a mais livros, e o carro é hoje [1996] arrumado num telheiro, cujo acesso é mais difícil, o que, aliado à consabida distracção de Eduardo Lourenço, já provocou marcas laterais na chapa do Citröen» (Afonso Praça, “O exilado de Vence”, Visão, Lisboa, 7/IX/1995, p. 81).



Ler Eduardo Lourenço não quer fazer publicidade à marca francesa, mas não deixa de referir que a escolha dos simpáticos Citröens parece típica de condutores distraídos ou amigos das amolgadelas.