segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Português Suave*

Eduardo Lourenço, na passada sexta-feira no Centro Cultural de Belém em Lisboa

«António Oliveira Salazar foi o “ditador mais hábil” do século XX europeu e “normalizou o país durante quase meio século”, tendo apenas uma minoria como oposição, afirmou esta sexta-feira o filósofo Eduardo Lourenço. Os portugueses não tinham, então apego suficiente à liberdade para se moverem? “A maioria não. (…) Todo o país estava numa calma soberana, embora os que eram contra pagassem a conta…” A explicação para esse “sono” dos portugueses estaria na falta de informação, por isso não é de estranhar que as coisas acontecessem assim. Ele próprio descobriu um mundo mágico, completamente diferente quando passou os Pirinéus pela primeira vez, confessou. Bem diferente é o caso dos protestos actuais em Hong Kong. “É extraordinário: a malta nova sabe com quem está confrontada, com gente que não brinca em serviço. Ali sim, é preciso uma coragem quase sobre-humana para enfrentar um regime tão organizado como aquele [o chinês], tão capaz de resolver o problema”, elogiou o filósofo durante uma sessão da conferência Portugal no Futuro organizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, no CCB. Eduardo Lourenço foi o escolhido para abrir o segundo tema – a liberdade em Portugal – e para tentar responder a perguntas como “Portugal tem uma cultura de liberdade?” ou “A liberdade é um produto da revolução ou da evolução? É uma conquista histórica ou um horizonte de realização?”. No seu jeito calmo e doce, Eduardo Lourenço não deu grandes respostas, desdramatizou cenários de falta de liberdade e deixou pistas para pensar. Questionado por um jovem sobre se os traumas em relação ao Estado Novo ainda dominam a sociedade portuguesa, o ensaísta diz que não, porque uma das características dos portugueses “é o que passou, passou”. A essa atitude individual, somou-se até a do regime democrático, que tem gerido uma “espécie de silêncio” sobre essa parte da História. “A nossa revolução não é uma revolução no sentido habitual, foi verdadeiramente sui generis, no bom sentido do termo à português”. Não há revoluções com flores. Mas na nossa houve. Não houve grandes vinganças, mas também não há nostalgias muito visíveis do antigo regime. Começa a ser qualquer coisa muito longínqua», afirmou Eduardo Lourenço. E exemplificou: só em 2014, devido à comemoração dos 40 anos da revolução de Abril é que o assunto se debateu a sério, houve colóquios, livros, filmes e séries que “revisitaram o 25 de Abril como nunca fora feito e como nenhum outro período da nossa História foi”. O que resta hoje dessa revolução? “Estamos confrontados, ao fim de 40 anos, com uma espécie de pausa dados os problemas que o país enfrenta. E se não fosse a televisão, provavelmente já teríamos tido outra revolução.» Que liberdade estamos então a preparar para as gerações vindouras?, perguntou Carlos Vaz Marques com quem o filósofo conversou durante hora e meia. “A liberdade não é uma espécie de coisa que nos cai do céu. É qualquer coisa que é fabricada pela vontade de cada um dos actores da vida cívica que somos nós. Os frutos da liberdade são aqueles que são preparados, pela iniciação de cada um de nós na vida. E essa iniciação passa pela família, pela educação que se recebe, mas sobretudo pelo ensino, que é a base de uma democracia com esse nome. A escola é que é o centro daquilo que o futuro pode ter de diferente.” Eduardo Lourenço considera que, apesar do recrudescimento em força de movimentos extremistas, como o de Marine Le Pen em França, “não há” neste momento um risco de regressão das liberdades, embora admita que há alguns perigos à espreita numa ou noutra parte do globo. Como é o caso das revoluções no mundo islâmico. “O Estado Islâmico como entidade mítica e como referência cultural, religiosa, ideológica, vai desde Marrocos até à Indonésia. Há ali um alfobre quase infinito para a Jihad recrutar gente durante muitos anos.» Mas hoje, os principais inimigos da liberdade, na verdade, “somos todos nós”. “Ninguém está à altura das promessas”, aponta o filósofo. Sobre o Estado, a resposta é a mesma: “O Estado somos nós. O Estado não tem outra realidade que não o conjunto dos cidadãos. Ele está lá como vontade expressa” de quem vota e “cumpre as funções que a Constituição permite”. “E nós todos, em vez de considerarmos o Estado como inimigo, temos que pensar que somos responsáveis por ele porque o elegemos.” Eduardo Lourenço já não se preocupa que o Homem seja dominado pela máquina. Não? Não, porque “já ultrapassou; já é isso que acontece; já estamos na ficção científica e nem sequer temos capacidade para acompanhar essa realidade porque ela nos ultrapassou”. Ele próprio diz que fica “pendurado naquele objecto de fascínio chamado televisão”. Internet? “Nunca visitei.” E sente-se um info-excluído? “Não sei, sou de um analfabetismo comovente.»



*O primeiro texto e a foto que aqui se publica reproduzem, com a devida vénia,  o teor de um artigo assinado por Maria Lopes na edição electrónica do jornal Público: http://www.publico.pt/politica/noticia/portugal-viveu-o-regime-de-salazar-sob-uma-calma-soberana-afirma-eduardo-lourenco-1671816.
Reproduz-se também uma outra versão, saída em papel, no sábado passado 4/X/2014, p. 6.