sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Palavra com poeta dentro (Sobre António Ramos Rosa)*


É o inconcebível infinito o seu puro nada

que nas palavras ressoa com a incandescência do ser.
António Ramos Rosa



Nenhuma realidade nos é dada fora da palavra que a nomeia. Isso não confere às palavras nenhum estatuto angélico. Pelo menos, aos olhos do meu caro António Ramos Rosa. Nunca as palavras lhe foram, como para outro grande poeta e amigo, aquelas «moradas de cristal» onde a música das coisas vem pousar como uma pomba. Para ele as palavras serão um pouco como aquele dedal de matéria negra de densidade infinita que os físicos atribuem aos “buracos negros” onde a luz do universo se afunda. É preciso lutar, sem fim, com a sua real obscuridade para recuperar mais fundo a luz nelas concentrada e perdida. Toda a poesia de António Ramos Rosa, a partir do momento em que abandona o conforto do poema como espelho da aparência exterior e suas seduções, vive deste esquizofrénico combate com a matéria mesma do poema, fulminada do interior pelo sentimento do excesso do real, mas mais ainda pela sua originária incapacidade de dizer o que diz. Onde Pessoa acaba, começa Ramos Rosa. Deve-se a António Ramos Rosa, no papel de garoto de Andersen, a observação de que a labiríntica poesia de Pessoa era, no final das contas, excessivamente inteligível. Não sei se nesta óbvia (mas não para toda a gente) observação, há ecos do diálogo que toda a sua vida manteve com o nosso comum amigo Vergílio Ferreira. Mas no que sob a pena do autor de Para Sempre relevava da polémica contra o transcendente “mistério-Pessoa”, em Ramos Rosa procede de uma intuição e de uma experiência capital de poeta confrontado com a obscuridade e a infinita tautologia da Palavra. A essência da palavra é o que esconde, o seu corpo de sombra, não o que revela. Pessoa percorrera, como ninguém, as aporias de uma palavra poética que não abdica de penetrar e ser lugar onde “o sentido” do universo se manifesta. A sua palavra poética vive e morre da vontade de circunscrever o espaço de sonho que separa ou une o Absoluto e o Nada. A sua visão e a sua aura consistem em dar um corpo de imagens e de metáforas a esta Busca do que segundo ele mesmo, se não encontra. A fulgurância do Real é inata na pupila, na imaginação, na palavra de Ramos Rosa. É o seu excesso que o fascina e o destrói. Nada há de mais claro neste poeta do nosso Sul que o muro branco, a cal, a luz que os des-realiza. Obscura, impenetrável, anti-matéria dessa matéria fulgurante que nós vemos e nos vê, é a palavra poética que não pode substituir o real mas não pode ofuscar¬-se diante dele sob pena de não existir. Entre a “Palavra e a Coisa” – e não é um acaso que tenha sido Ramos Rosa o tradutor do memorável ensaio de Foucault – se abre aquele espaço que durante toda a sua vida tem oferecido aos desvelos do autor de Animal Olhar uma inesgotável fonte de perplexidade e de inspiração. O clássico caminho da metáfora não era o que se impunha para sobrevoar este campo minado. A Palavra sobre o mundo, a palavra sobre a palavra onde o mundo se diz e se perde, foram sempre a sua obsessão, fascínio e martírio indissociáveis. Poesia da reiteração infinita, alguns a encontrarão monótona ou imóvel, mas esse é o preço da fidelidade essência mesma de uma visão poética que tem como horizonte uma Palavra que, por definição, é, sem fim, o som e o eco de si mesma. Com um Poeta dentro. Um grande Poeta. 
*António Ramos Rosa faria hoje noventa anos. A efeméride é assinalada, esta tarde, na Biblioteca Nacional, em Lisboa, com o lançamento de Poesia Presente, um volume organizado por Maria Filipe Ramos Rosa e editado pela Assírio & Alvim. Ler Eduardo Lourenço evoca a memória do poeta recuperando um texto do ensaísta, redigido em Vence a 22 de Setembro de 1999 e que foi publicado no número cinco da revista Relâmpago (Outubro de 1999, pp. 7-8). 
Na sessão de lançamento, serão ditos poemas de António Ramos Rosa por Susana Neves e Paulo Filipe Monteiro. Intervirão também Richard Zenith e Ana Paula Coutinho Mendes, Professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. A não perder.