O excelente hors-série da revista Sábado que chegou hoje às bancas é, a vários títulos, memorável. Desde logo, porque se trata de um dossier, com algumas fotografias absolutamente espantosas, que evoca o quarto de século de um acontecimento singular na nossa contemporaneidade: a queda do Muro de Berlim. Para além da recuperação do inesquecível Fernando Assis Pacheco e do talentoso reporter que ele também sempre foi, neste caso «um dos primeiros jornalistas portugueses a chegar à cidade dividida» (p. 50), o leitor defronta-se com o que talvez seja um dos mais notáveis ensaios de Eduardo Lourenço dos últimos tempos: “De Jericó a Jerusalém – História de Muros” (pp. 58-59). Uma extraordinária fenomenologia do Muro de Berlim e, por via deste, do próprio conceito de muro. Um percurso, breve mas rigoroso, que vai desde das primitivas divisões de colmo até aos cordões sanitários de Israel: «Não há hoje muro mais simbólico no mundo» (p. 59). Mas que também reflecte sobre textos fundacionais da nossa civilização, como neste admirável passo: «Nenhum muro separava Caim e Abel. Segundo a letra bíblica, sugere-se mesmo – abrindo para uma insondável perplexidade – que a pulsão mortal de Caim se deveu à preferência de Deus por Abel. Aí estaria o “muro dos muros”, nessa espécie de descriminação do Criador a respeito de uma das suas criaturas. Ou o que a teologia chama Graça quando a preferência recai sobre Abel» (ibidem).
Talvez se possa (ou até deva) ler o texto que Eduardo Lourenço nos oferece hoje na Sábado em articulação com um outro artigo que, há precisamente vinte cinco anos, o ensaísta dedicou ao que chamou então “A derrocada da utopia”*, recuperando o título de uma famosa biografia que Eugene Lyons fizera de Estaline. Revisitando hoje esse ensaio de Eduardo Lourenço, é impossível não ser sensível a várias notas que, na altura, destoaram de uma espécie de optimismo geral numa Europa que finalmente se parecia reunir. Assim, Eduardo Lourenço sublinhava que, por um lado, «O muro de Berlim não caiu só para um dos lados, explodiu no interior de um sistema de forças que consagra, quarenta anos depois de Yalta, a ressurreição e a revanche dos vencidos» (p. 5). Mas, por outro lado, declarava que «a única questão grave que a actual derrocada põe não só ao antigo mundo comunista mas ao Ocidente é a de saber se, em seu lugar, para lá da libertação sem preço do horror ou da mentira institucionalizadas, surgirá um mundo realmente democrático ou qualquer coisa de imprevisível que poderia até “redourar” a imagem de uma utopia que acaba num banho de sangue. As democracias ocidentais têm alguns motivos de júbilo diante do que acontece a Leste, mas enganar-se-iam tragicamente imaginando que ocupam, por direito divino, o palco da história» (ibidem).
Alguns dos acontecimentos que vivemos e que, de certa forma, ainda estamos a viver, desde a queda do Muro até aos nossos dias, infelizmente encarregaram-se de dar bastante razão ao diagnóstico de Eduardo Lourenço que, à parte um comentário (de resto, não isento de equívocos) de Francisco Louçã no mês seguinte**, pouca repercussão parece ter tido na opinião pública portuguesa. Seria lamentável que “De Jericó a Jerusalém” não viesse a ter muito mais sorte nesse capítulo. Deseja-se vivamente o contrário, até porque, tal como “A derrocada da utopia”, é um fabuloso ensaio. A não perder, portanto!
Talvez se possa (ou até deva) ler o texto que Eduardo Lourenço nos oferece hoje na Sábado em articulação com um outro artigo que, há precisamente vinte cinco anos, o ensaísta dedicou ao que chamou então “A derrocada da utopia”*, recuperando o título de uma famosa biografia que Eugene Lyons fizera de Estaline. Revisitando hoje esse ensaio de Eduardo Lourenço, é impossível não ser sensível a várias notas que, na altura, destoaram de uma espécie de optimismo geral numa Europa que finalmente se parecia reunir. Assim, Eduardo Lourenço sublinhava que, por um lado, «O muro de Berlim não caiu só para um dos lados, explodiu no interior de um sistema de forças que consagra, quarenta anos depois de Yalta, a ressurreição e a revanche dos vencidos» (p. 5). Mas, por outro lado, declarava que «a única questão grave que a actual derrocada põe não só ao antigo mundo comunista mas ao Ocidente é a de saber se, em seu lugar, para lá da libertação sem preço do horror ou da mentira institucionalizadas, surgirá um mundo realmente democrático ou qualquer coisa de imprevisível que poderia até “redourar” a imagem de uma utopia que acaba num banho de sangue. As democracias ocidentais têm alguns motivos de júbilo diante do que acontece a Leste, mas enganar-se-iam tragicamente imaginando que ocupam, por direito divino, o palco da história» (ibidem).
Alguns dos acontecimentos que vivemos e que, de certa forma, ainda estamos a viver, desde a queda do Muro até aos nossos dias, infelizmente encarregaram-se de dar bastante razão ao diagnóstico de Eduardo Lourenço que, à parte um comentário (de resto, não isento de equívocos) de Francisco Louçã no mês seguinte**, pouca repercussão parece ter tido na opinião pública portuguesa. Seria lamentável que “De Jericó a Jerusalém” não viesse a ter muito mais sorte nesse capítulo. Deseja-se vivamente o contrário, até porque, tal como “A derrocada da utopia”, é um fabuloso ensaio. A não perder, portanto!
foto de Ler Eduardo Lourenço |
*Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 392, Lisboa, 9/I/1990, pp. 4-5. O texto, escrito em Vence no dia de Natal de 1989, será depois integrado em A Europa Desencantada.
**“Para que lado cai o Muro? (sobre um escrito de Eduardo Lourenço)”, Suplemento O Jornal Ilustrado de O Jornal , Lisboa, 2/II/1990, p. 19.