Ler Eduardo Lourenço não quer deixar de recordar o Dia Mundial da Filosofia que se assinalou na passada semana. Como tal, oferece aos seus leitores um escrito de 1952, publicado muitos anos depois na Revista Metamorfoses (num dossier especial, com o título “Os trabalhos e os dias”, dedicado ao ensaísta em que, para além de inéditos, recolhe um excelente conjunto de testemunhos sobre Eduardo Lourenço). Trata-se de uma brevíssima mas profunda reflexão acerca do que se intitulou aqui a Filosofia e o Tempo. Como se depreende das palavras do Autor – escritas há mais de meio século – não é este tempo favorável à Filosofia, ou aos verdadeiros filósofos. Pressionados pela ideia de novidade, o tempo presente não se deixa reflectir. É o tempo do jornal diário, mais do que “o livro da minha vida”. Mas que se dê passagem ao que interessa, ao texto.
Metamorfoses. Revista da Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros, nº 4, Rio de Janeiro, Setembro de 2003. |
«Coimbra, 8 de Setembro de 1952.
Se as Investigações Lógicas ou as Ideias de Husserl tivessem sido publicadas há dois ou três séculos, os homens cultivados desse tempo, os universitários, as academias, teriam sido obrigados a consagrar-lhes comentários idênticos aos que durante mil anos de escolástica florescente teceram em torno da Metafísica de Aristóteles desde Alexandre de Afrodisia até Francisco Suarez. Publicado neste bendito século em que o mito da originaldiade conforta todo o aprendiz de filosofia na ideia de que é mais interessante ou inteligente que todos os Husserl (ou Bergson ou Russell) do mundo, verá sucederem-se e passarem sobre elas gerações e teorias que a sua simples leitura teria evitado. Terá sido esse o preço do que chamamos a Modernidade?
Se as Investigações Lógicas ou as Ideias de Husserl tivessem sido publicadas há dois ou três séculos, os homens cultivados desse tempo, os universitários, as academias, teriam sido obrigados a consagrar-lhes comentários idênticos aos que durante mil anos de escolástica florescente teceram em torno da Metafísica de Aristóteles desde Alexandre de Afrodisia até Francisco Suarez. Publicado neste bendito século em que o mito da originaldiade conforta todo o aprendiz de filosofia na ideia de que é mais interessante ou inteligente que todos os Husserl (ou Bergson ou Russell) do mundo, verá sucederem-se e passarem sobre elas gerações e teorias que a sua simples leitura teria evitado. Terá sido esse o preço do que chamamos a Modernidade?
O nosso mundo é de tal sorte que o mais incapaz dos candidatos a doutor de Filosofia teria vergonha de si mesmo se se considerasse um discípulo. A verdade não interessa a ninguém. O que importa é ser diferente e como para ser diferente é preciso dizer outra coisa dir-se-á outra coisa sem precisar de examinar o que foi escrito antes. Comentários a Husserl não falta. Teve, terá a sua hora. Como uma moda, não como uma fonte de perplexidade renovada como os clássicos de outrora, como se o mais antigo fosse o mais venerável. Era um defeito sem dúvida mas fecundo. Agora os originais não chegam a ser lidos e ainda menos estudados. Só algum poeta célebre goza hoje daquele privilégio quase miraculoso de ser fonte e alimento do espírito como o foram Homero, Virgílio, Horácio. O melhor romance tem hoje o mesmo destino que o jornal. Ninguém o lerá duas vezes.»
Ler Eduardo Lourenço aproveita para lembrar, e saudar, o excelente trabalho desenvolvido pelo
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, na tradução e edição das obras de Edmund Husserl.