Delfim Santos no Congresso Internacional de Filosofia (Instituto Brasileiro de Filosofia, São Paulo,1954)
por Felipe Delfim Santos
Carta de Eduardo Lourenço a Delfim Santos :
Lille, 22 de outubro de 54
Senhor Doutor
Certamente o Senhor Doutor teve ocasião de viver muitas vezes uma experiência semelhante à minha: ser afectado em grau, talvez excessivo, por uma novidade pátria, sobretudo se ela não é precisamente do género agradável. O isolamento no estrangeiro tem essa propriedade curiosa.
A novidade (para mim) é como deve calcular a da celebração do 1º Congresso de Filosofia em Portugal sob a égide dos jesuítas. Não há dúvida que é um autêntico golpe de mestre jesuíta no bom e no mau sentido. Para mim é antes de mais e quase fisicamente, um golpe. Mas, fazendo esforços para conservar toda a serenidade, tenho de reconhecer que é bem feito e mesmo, embora o escreva com toda a tristeza, bem merecido. Eles fazem o que devem e fazem-no bem. É o resto das pessoas que persistem no sonho vago de acreditar que pensam, quando o seu pensamento não tem nenhuma eficácia sobre a realidade da sua pátria, que está em erro e lhe oferece a ocasião de um triunfo fácil.
Eu não me excluo desse número. A única escusa perante mim próprio reside no facto da minha nula influência. Contudo, na medida do possível, não abdico da luta por um estado de coisas mais decente e por isso aqui estou junto de alguém que tem prestígio e influência capazes de contribuir para modificar aos poucos a nossa subordinação mental.
Não sei qual será a reacção do Senhor Doutor em face desse facto consumado (ou a consumar) do famoso Congresso. Eu, pessoalmente, não sou anti-jesuíta, se se entende por isso ser contra a existência da “ordem” ou contra o direito de um jesuíta ser jesuíta. Não sou contra a sua existência em Portugal, nem contra o direito que lhes reconheço de “jesuitar” o mundo inteiro, pois no fundo cada um de nós o deseja “jesuitar” à sua maneira e como cristãos lhes incumbe cristianizar o mundo. Mas a questão muda de figura quando se passa da nuvem teórica à acção concreta. O que se está passando em Portugal é claro como água e se não o fosse, o preâmbulo do prospecto do Congresso que hoje me chegou às mãos, o esclareceria. Trata-se da contrarreforma em todo o esplendor possível em 1955, trata-se de arregimentar o pensamento nacional sob uma cor única, de lhe vincular uma directriz precisa de “bom pensamento” e a uma tal manobra não se pode ficar indiferente. Eu dou o direito a um jesuíta de o ser (mesmo se o não desse, eles o seriam…) mas como não sou jesuíta reivindico um igual direito de o não ser em toda a liberdade. Mas ao contrário de Ibsen que dizia que o homem forte é o homem só, eu creio com a Bíblia que é o homem que faz o homem e que a simples oposição individual, moralmente válida, é praticamente nula se não se congrega num esforço supra-individual. Por isso, aqui isolado, lhe envio esta espécie de S.O.S., esta alerta que sei desnecessária, mas que ao menos me dá a ilusão de não reagir só.
O que está feito está feito e o mal que isso causa já é irremediável: o 1º Congresso de Filosofia em Portugal é obra dos Jesuítas e o que é mais triste, obra da impotência dos pensadores independentes de toda a “consigne” religiosa e política. Participar nele ou não significa uma derrota igual e talvez maior se não se estiver presente. Como estou escrevendo sob o império do “prospecto” ainda não o sei bem. Mas creio que desde já há qualquer coisa a fazer e o Senhor Doutor é das pessoas mais autorizadas para pôr mãos à obra. Assim uma primeira e notável derrota seria ocasião para uma primeira semi-vitória e, mais tarde e aos poucos, a condição de permanência e existência de um pensamento realmente eficaz e livre. Livre para poder ser tudo, mesmo jesuíta, e não livre para não poder ser nada, senão jesuíta.
O Senhor Doutor já deve imaginar a que me refiro: à nado-morta Sociedade de Filosofia. Eu sei o que lhe custou já de dissabores e decepções. Sei ou prevejo os que pode custar-lhe ainda, mas nem por isso vejo neles ocasião para desistir. Agora, menos do que nunca. Muitos, todos ou poucos, é preciso que essa famigerada Sociedade nasça, exista, viva, para não apresentar ao público internacional (e o que é mais importante, a nós mesmos) a única face contrarreformista e implicitamente inquisitorial que ela lhe pode mostrar dentro em pouco. Não creio que seja uma utopia aquilo que mesmo os brasileiros conseguiram criar, segundo penso. O Senhor Doutor sabe melhor do que ninguém a cara de espanto que todos fazem quando confessamos no estrangeiro que tal Sociedade não existe.
Dificuldades? É natural que as haja, mas não podem ser insolúveis. É preciso que ela exista mesmo sem sede, sem dinheiro, sem coisa alguma, excepto a presença e a vontade das pessoas para quem ela representa algo de necessário e importante. A primeira coisa a fazer para a manter independente é renunciar a toda e qualquer espécie de ligação com o Estado, exceptuando naturalmente as estabelecidas por Lei. Enfeudá-la a qualquer Inst. de Alta Cultura é matá-la, a menos que condições claras de independência não sejam fixadas. Eu creio, e o Senhor Doutor me dirá, que a base material não seria difícil de realizar, fazendo apelo a “beneméritos de honra”, capitalistas, etc., sempre dispostos a dar algum dinheiro se se sabe manejá-los com a arma cósmica da vaidade, que neste caso seria perdoável.
Pessoas? É o nó-górdio da questão, mas também não me parece irresolúvel. A escolha do presidente não faria talvez dificuldade de maior e para harmonizar gregos e troianos estabelecer-se-ia uma espécie de triunvirato de vice-presidentes (por exemplo) de modo a dar representação a Lisboa, Coimbra e Braga. E se isso não bastasse podia recorrer-se a um “roulement” das honras, estabelecendo prazos ou recorrendo para o “2º governo” da Sociedade a eleição dos seus corpos. Em resumo, se houvesse boa vontade, não faltariam processos para levar avante essa necessária Sociedade.
Espero que o Senhor Doutor me perdoe a extensão do arrazoado, tanto mais que sei que partilha certamente de alguns desses pontos de vista e que não veja nele impertinência mas simples reacção de quem realmente se considerou afectado com a novidade do Congresso e se apressou na busca de um remédio junto de quem está em condições de o propor.
Este ano não me foi possível ir a Portugal e naturalmente só lá para o verão terei oportunidade de conversar como Senhor Doutor. Volto à Alemanha no fim do mês onde como sabe me tem às suas ordens. Procurei-lhe por diversas vezes o [livro do] Kerschensteiner e não o encontrei. Hamburgo não é famosa em matéria filosófica mas eu tenho que voltar para lá. Pedi ao Instituto para me enviar para Freyburg mas até agora nem resposta.
Deseja-lhe um bom fim de férias e um novo ano escolar propício, com os melhores cumprimentos.
Eduardo Faria
Resposta de Delfim Santos a Eduardo Lourenço:
19.XII.54
Meu caro Amigo:
Li e reli a sua carta e só não respondi imediatamente por não saber que lhe dizer… A situação é a que expõe na sua carta e não é possível demovê-la. A solução que propõe já foi testada e até nos pormenores que indica: triunvirato recorrente. Mas não, nada foi possível e eu já estou descrendo de que, nas circunstâncias actuais, seja possível fazer outra coisa do que nada fazer. Eu irei lá como sempre só e também nada mais desejo. Não pertenço a nenhum coro e a minha situação profissional é também a mesma: sempre só. A “coisa” não me indignou tanto a mim como a si, pois ela é consequência de outras que imensamente me têm indignado. Era o esperado. Pois não lhe parece? E julgo que outras consequências ainda surgirão… Do Brasil vim surpreendido e desde a minha chegada ainda não readquiri o equilíbrio. Surpreendeu-me realmente… Agradeço-lhe a sua prova de confiança que a sua carta testemunha, creia na muita simpatia, apreço e consideração do seu colega e amigo
Delfim Santos
P.S. Talvez esta carta lhe pareça evasiva. É-o na verdade.
Nota Explicativa de Felipe Delfim Santos:
Eduardo Lourenço escreve a Delfim Santos em 1954 por ocasião do anúncio do Primeiro Congresso Nacional de Filosofia que estava a ser organizado pelos jesuítas da Faculdade de Filosofia de Braga, em comemoração do IV Centenário da entrega do Colégio das Artes à Companhia de Jesus. O seu claro propósito é o de contar armas para uma guerra, mas não deixa de nos surpreender onde tentou buscar um seu aliado «de prestígio e influência», surpresa que, como veremos, se espelhará quer na própria reação de Delfim Santos ao receber esta carta quer nos previsíveis efeitos da resposta que lhe resolve dar.
O argumento de Eduardo Lourenço desdobra-se em dois pontos: um tal Congresso deveria ter tido diferentes promotores e fora a demora na constituição da Sociedade Portuguesa de Filosofia que deixara aos jesuítas esta iniciativa que naturalmente lhe caberia. A derrota que invoca em primeiro lugar é fruto da carência que aponta em seguida.
Delfim Santos não entende o S. O. S. de Lourenço nem sente a iniciativa jesuíta como uma derrota. É certo que teve os seus livros resenhados com hostilidade nas páginas da Revista Portuguesa de Filosofia e mais ainda nas da Brotéria, as duas revistas da Companhia, que o têm por ateu e heideggeriano, cultivador de um tipo de existencialismo oposto aos princípios do cristianismo. Talvez por essa razão nunca escreveu nem escreverá nessas duas publicações. Mas este retrato que inicialmente de si fizeram os jesuítas não está correto: nascido no ateísmo da casa paterna, convertera-se na juventude à Igreja Evangélica de que aos poucos se foi distanciando. Sem qualquer ligação institucional ou afetiva ao catolicismo, cultivou boas relações com alguns sacerdotes individualmente. Pode-se afirmar que quando estas cartas são escritas ele é um pensador nem crente nem descrente, para quem as questões religiosas não constam da agenda filosófica.
Com mais propriedade, Eduardo Lourenço escreve a Delfim Santos por reconhecer nele o filósofo independente, solitário, avesso a ortodoxias e a dogmatismos. Mas bastariam tais circunstâncias para ele se situar no campo contrário ao da organização pelos jesuítas do Congresso? Entenderia ele também a constituição da Sociedade Portuguesa de Filosofia como uma solução e uma profilaxia ao ascendente eclesiástico nos meios filosóficos?
A resposta de Delfim Santos é desconcertante.
Começa por adotar um tom um pouco frio ao não nomear o seu correspondente, contrastando com a carta que lhe escreverá quatro anos depois, em melhor momento, e que será iniciada por «Meu caro Eduardo Faria». As razões para esta reserva estão não tanto na recusa em sintonizar com o alarme soado por Eduardo Lourenço sobre a hegemonia “contrarreformista” dos seguidores de Loyola mas muito mais porque o remédio apresentado é na verdade a causa da “doença”.
Eduardo Lourenço ignorava certamente que Delfim Santos e os jesuítas se tinham aproximado por circunstâncias casuais: em 1949 o Professor da Faculdade de Letras de Lisboa coincide na viagem para Mendoza, onde se celebraria o Primeiro Congresso Nacional de Filosofia da Argentina, com o Padre Severiano Tavares – homem de espírito aberto e temperamento jovial – acabando por contrair uma grave pneumonia que o reteve em Buenos Aires. A atenção e dedicação ao doente pelo seu acidental companheiro de viagem não seriam esquecidas. A partir dessa data iniciaram relações epistolares e tanto ele como os seus companheiros da Faculdade de Filosofia de Braga foram olhando mais favoravelmente o pensador portuense. Corolário desta aproximação é que Delfim Santos será precisamente o convidado de honra que pronunciará a alocução inaugural na sessão solene de abertura do Congresso de 1955*. Encontramos assim, à partida, um desconhecimento por parte de Eduardo Lourenço da estreita ligação de Delfim Santos aos organizadores do Congresso.
Constrangido pela falta deste dado na informação do seu correspondente, Delfim Santos tarda e hesita em responder. Mas uma outra questão, mais incómoda ainda, se lhe sobrepõe: a da impaciência de Lourenço pela demora na constituição da Sociedade Portuguesa de Filosofia. É este o tema que carreia para o diálogo as profundas clivagens da comunidade filosófica nacional e que lhe reaviva «os custos em dissabores e deceções» pagos pela tentativa do seu arranque com o seu amigo Severiano Tavares e sob a inspiração do Instituto Brasileiro de Filosofia, fundado em 1949 pelo paulista Miguel Reale. O mais delicado é que se a Sociedade não nascera, tal se devia precisamente à recusa de Joaquim de Carvalho, mestre e mentor de Eduardo Lourenço e espírito pouco dado a acolher iniciativas que não partissem de si próprio, em presidir a este corpo associativo, bem como às manobras dilatórias por ele promovidas para que a Sociedade nunca visse a luz do dia. É por isso que em 1950 o Professor de Coimbra tentará chamar a si a paternidade da ideia, que afinal já estava parcialmente concretizada dado que nesse mesmo ano a Sociedade vê os seus estatutos serem aprovados pelo Ministro da Educação. Porém não passa de um «nado-morto», como diz Lourenço, devido às divisões que persistem quanto a cargos, estatuto institucional, dependência ou não de órgãos oficiais, meios de financiamento, etc. Quatro anos mais tarde Eduardo Lourenço, talvez pela distância geográfica do meio português, ainda a julgava ressuscitável, mas Delfim Santos desengana-o.
É na verdade esta a questão à qual Delfim Santos responde desde o início do seu texto até às palavras “Eu irei” e é este o motivo do seu desconforto perante a inesperada carta que o interpelava. Replica que as soluções tentativamente propostas por Eduardo Lourenço já foram exploradas sem sucesso e se encontram esgotadas. Quanto ao Congresso reafirma precisamente a sua solidão e isolamento de grupos, essa mesma independência que fora a causa do pedido de apoio que recebera, deixando contudo explícito que não encontra motivo, na sua organização pelos jesuítas, para o escândalo invocado por Eduardo Lourenço.
Delfim Santos remata a carta com uma referência à sua ida ao Congresso Internacional de Filosofia que decorrera em São Paulo nesse mesmo ano de 1954, obra precisamente dos homens do Instituto Brasileiro de Filosofia, bem como ao seu deslumbramento pelo Brasil, ominosa referência a posteriores desenvolvimentos que se darão quando Eduardo Lourenço irá aceitar o convite para ensinar Filosofia nesse país e Delfim Santos o recusará – ver as cartas trocadas entre ambos em 1958 e 1959 neste blogue http://leduardolourenco.blogspot.com/2011/02/correspondencia-com-delfim-santos-1958.html e outros materiais em Filipe Delfim Santos, ed. (2011) Meu caro Delfim: Delfim Santos e o Brasil, Lisboa: Arquivo Delfim Santos.
Consciente da perturbação que as suas linhas introduzem na comunicação entre os dois, Delfim Santos acrescenta ainda uma nota metaepistolar: pois que muita coisa não foi dita e prescindiu de apontar as razões do fracasso da Sociedade (ou seja, de acusar Joaquim de Carvalho), a missiva pode parecer que foge às questões e que é evasiva. Delfim Santos simultaneamente concede essa falta e transforma-a em virtude: declara então que a carta é evasiva propositadamente.
Todos os documentos trocados entre Delfim Santos e os jesuítas da Faculdade de Filosofia de Braga sobre a organização do Primeiro Congresso Nacional de Filosofia e a tentativa de constituição pelo Padre Severiano Tavares e por Delfim Santos da Sociedade Portuguesa de Filosofia serão publicados na obra de Filipe Delfim SANTOS & José António ALVES, orgs. (2011) Escola de Braga: A Correspondência com Delfim Santos, Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia.
* O texto será publicado no número especial da Revista Portuguesa de Filosofia onde constam as actas do Congresso: Filosofia como Ontologia Fundamental, Actas do I Congresso Nacional de Filosofia, Revista Portuguesa de Filosofia Vol. 11, 1956, pp. 10-15.