quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Urbano Tavares Rodrigues: Um adeus ao último expressionista*

O expressionismo é a máscara. 
MICHEL BUTOR, 1979 
Que se fale do Eterno ou do nada, 
confessa-se a impotência comum 
de colocar o valor no perecível. 
GEORGES BATAILLE, 1947

Ninguém na nossa geração escreveu mais à flor do tempo que Urbano Tavares Rodrigues. As mais vibráteis pulsações do quotidiano sentimental, erótico, literário, político, vieram, como se fossem feitas para ele e ele para elas, fixar-se sem pena e sem fadiga aparente na sua prosa efervescente, nervosa, encandeada pelas reverberações do instante. Nem por acaso o autor de Bastardos do Sol se debruçou um dia sobre o donjuanismo, epopeia ou tragédia da fulguração vital do instante humano vivido como grau zero e ao mesmo tempo passagem obrigatória daquilo que designamos, por carência, como “eterno”. Urbano Tavares Rodrigues foi desde muito jovem demasiado consciente e instruído para poder ser apenas em Portugal um jornalista de tradição gloriosa que não há ou se perdeu. Também era por temperamento e inquietude em excesso ávido de colher e beber na hora que passa a espuma dos dias para esperar com paciência as supremas e acaso ilusórias decantações. Nascido à sombra mais mitificada que tutelar de d’Annunzio e Teixeira Gomes, foi construindo com talento, e uma vertigem cultural gémea dele, a crónica mais repassada da experiência agónica de uma época que a si mesma se revelava e vivia como uma sucessão ininterrupta de miragens, alucinações, delírios, fogos fátuos de uma decomposição subterrânea de que um dia o autor da Porta dos Limites se fará menos o cronista devorado pelo espectáculo que o analista convulso, revoltado, mas sempre, em qualquer recanto, conivente sem ser cúmplice. Não houve metamorfose da sensibilidade ocidental dos últimos trinta anos, ética, artística, ideológica, curiosidade real ou suporte que não tivesse encontrado eco fascinado, espasmódico ou aflito no homem de espírito romântico e romanesco que é Urbano Tavares Rodrigues. Um eco bem lusíada, entenda-se, pois o peregrino de sítios, paisagens, atmosferas, corações alheios soube transmigrar para o horizonte da leitura pátria, com inegável sucesso, a ilusão do insólito e do aventuroso tão cara a um povo que há muito só se desloca no imaginário através das máquinas de devorar o tempo inventadas por outros. A um público que nos anos cinquenta das suas novelas cosmopolitas não saía ainda de casa senão para voltar excitado às doçuras arcaicas de um mundo estofado em pele maternal, Urbano comunicou o frisson nouveau de visões, experiências, encontros, notícias, sonhos no limite do escândalo caseiro, esses sonhos e visões que toda a gente vivia só por procuração cinematográfica, caídos do céu de celulóide dos “países onde se passava alguma coisa”. Dessa gente, desses lugares, desses costumes, vícios, Urbano Tavares Rodrigues não fornecia ao seu público uma versão voyeuriste subalterna como tantas outras habituais no país culturalmente poluído que todos habitamos. Urbano esteve lá como pedia Eça a Oliveira Martins, lá onde se fazia e desfazia o tecido miraculoso da contemporaneidade que fulgura e ninguém contempla sem se destruir e construir nela e com ela. Generosamente, a lusíada disponibilidade de Urbano ofereceu-se a esse circo da vida, em perpétua e dolorosa alegria, deixou-se absorver por ele para melhor fascinar os seus leitores-ouvintes, criando-lhes ao lado do quotidiano morno onde se desvivem um mundo de fantasmagoria, brilhante, febril, apaixonado, de que ele é, senão o principal protagonista, ao menos o primeiro espectador. Alguns acrescentarão, vítima, mas toda a paixão tem em si mesma a sua redenção. Desta paixão pelo que entusiasma, agride, comove, enoja, deste amor quase mórbido pelo fait-divers do sentimento ou da violência, os seus leitores lhe serão gratos e fiéis por adivinharem que sob eles se oferece desarmado um homem sensível à mistura indiscernível de esplendor e ignomínia que brilha no coração de cada um de nós.
Com o mesmo fervor e exaltação, com a mesma equívoca fascinação com que sempre se moveu nas atmosferas onde a pulsão de morte se oferece os refinamentos do desejo ou dos seus simulacros, Urbano Tavares Rodrigues se fará em casa, na plácida e silenciosa casa portuguesa dos anos sessenta, o novelista da subversão nocturna, da revolução marginal que aos poucos, mas sem recuos, mudará o subsolo do viver íntimo lusíada, antes de se traduzir em libertação colectiva de tabus ancestrais, e, por ancestrais, menos mortos do que seria útil suponho eu confessá-lo. Casa de Correcção pertence a essa viagem no interior do horrível quotidiano português, inundado de luz exterior e sepultado em doçuras piores que todos os suplícios. Mundo de máscaras por ser visceralmente o de uma mascarada histórica e social, só podia distrair-se em “carnavais negros”, em pseudo-estridências que não podiam acordar o sonambulismo colectivo de que eram ao mesmo tempo imagem e reflexo. O antigo horizonte ético que enquadrava as audácias novelistas do promeneur de Paris ou de Hamburgo, sem ter desaparecido, compartilha a sua presença com o horizonte crítico e à acusação-fascinação do jovem Urbano associa-se, como pano de fundo, a música da denúncia irónica ou virulenta de um mundo às avessas em transe de agonia. Mais que o lamentável baile de máscaras, é difícil saber quem conduz o baile, se a angústia nua de uma fauna humana prisioneira de uma sociedade oficialmente imaculada ou o gosto do próprio narrador pelos abismos e jogos em que o sadismo joga à cabra-cega com uma compaixão que parece sair em linha recta das páginas gesticulantes de Raul Brandão ou de Fialho, país longínquos da visão que em Urbano agoniza ou derrapa em estridências miméticas do mundo alucinado e suicidário dos James Dean irrisórios do nosso marialvismo sem drama verdadeiro.
Para meu gosto, não é tanto essa pintura de uma juventude à deriva, imagem apenas caricatural, de uma sociedade que não conhece do percurso do Desejo senão os traços da sua ausência, que constitui o essencial da menos alegórica que metafórica Casa de Correcção. Paradoxalmente, na produção imensa daquele que será, acaso, o nosso último “expressionista” não são as páginas mais exteriormente perturbadas ao nível da escrita, mais carregadas de referências e sinais do mundo exorbitado, desaxé, que através delas se evoca, aquelas que melhor traduzem a visão profunda do seu autor. São as mais contidas, as mais ao rés da sua voz interior como as breves páginas de A Morte da Cegonha com que todo o pathos lírico de Urbano se poderia resumir, páginas de desnuamento e deslumbramento como só a memória infantil revisitada é capaz de oferecer ao que em todos nós se salvou do naufrágio alegre ou triste do pascaliano divertimento social. Mas a grande novela deste livro é Tio Deus, meticulosamente conduzida, plena de um sarcasmo à altura do mundo hipócrita que dois anjos do lar português se encarregarão de exterminar com o rigor delirante de dois funcionários do absoluto, para que de tão ordenada, “correcta”, obscena e monstruosa realidade social e moral com a espessura de séculos não fique pedra sobre pedra. Como as “criadas” de Genet, os dois “monstros” devolvem à sua verdade a mentira de um mundo que foi, e acaso é ainda o nosso. É uma novela sóbria, em meias tintas, voluntariamente domesticada, “suspensa”, para que o efeito do cataclismo redentor se recorte diante de nós como um gume de navalha. O moralismo e a ideologia fundem-se na implacável mecânica de uma narrativa que os eleva à altura do mito. Uma espécie de calma, de silêncio narrativo sobrepõe-se aqui ao frenesi estilístico, um pouco voyant, do Carnaval Negro. É para este expressionismo vencido do interior que a longa marcha do autor de Vida Perigosa, ou Nus e Suplicantes, sem dúvida orientou a sua barca em demanda do melhor porto. A violência mais subversiva contra a violência histórica e eterna da “brandura dos nossos costumes”: que mais conveniente espelho da metamorfose do antigo caçador de instantes em virtuose dos rituais onde o seu tempo e o tempo de muitos outros se fixou com tão depurada eficácia? 

* Urbano Tavares Rodrigues deixou-nos no mês passado. O elevado número de testemunhos sobre a sua generosidade (poucos escritores terão acolhido com tanta paciência e interesse os mais novos) e a sua coragem comprovam a importância do papel desempenhado por Urbano na cultura portuguesa contemporânea. No entanto, salvo raras excepções, à originalidade da sua obra talvez não tenha sido concedido o mesmo destaque. Regressado de férias, Ler Eduardo Lourenço recupera, em homenagem a Urbano, um magnífico ensaio de Eduardo Lourenço, com o título interrogativo “O último expressionista?” e escrito em Vence, a 23 de Março de 1979. O texto depois serviu de prefácio à terceira edição do livro Casa de Correcção (Europa-América, 1987, pp. 15-20). A foto que ilustra este post foi recuperada pelo Diário de Notícias em Agosto e refere-se à apresentação pública que o ensaísta fez de uma outra obra do seu amigo de longa data. Infelizmente, Ler Eduardo Lourenço desconhece se desta última apresentação resultou algum texto escrito.