quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Deriva sem fim ou em busca do espião de Deus

«A incrível pretensão da comunidade cristã de se imaginar tal 
por se apelidar de cristã é para Kierkegaard 
a mais insofismável prova do seu anticristianismo»
 Eduardo Lourenço, Heterodoxias, 2011, p.288

Sören Kierkegaard


No percurso intelectual e na obra de Eduardo Lourenço, naquilo a que ele mesmo costuma chamar uma deriva sem fim, vários escritores (poetas, filósofos, romancistas, ensaístas) assumem o papel de interlocutores privilegiados. Entre esses destaca-se ainda, como é evidente, Pessoa, companhia inseparável do autor de Fernando Rei da Nossa Baviera. Menos referida é, no entanto, a também decisiva presença, muitas vezes subterrânea, pontualmente explícita, de Sören Kierkegaard. Aliás, do diálogo, ao mesmo tempo metafísico e ficcional, entre Pessoa e Kierkegaard nascem aquelas que talvez sejam as contribuições filosóficas mais originais de Eduardo Lourenço. Dito de outro modo: se há textos do ensaísta que, por versarem temas e figuras da cultura portuguesa, não são imediatamente acessíveis e interpeladores para um leitor estrangeiro, precisamente porque, pelo menos num primeiro momento, desconhece o contexto cultural específico donde essas reflexões emergem, ensaios como “Kierkegaard e Pessoa ou as máscaras do absoluto” ou “Kierkegaard e Pessoa ou a Comunicação Indirecta” (ambos insertos em Fernando Rei da Nossa Baviera) dificilmente deixarão de interessar a qualquer leitor do pensador dinamarquês que hoje tem, como se sabe e graças a uma extensa e rigorosa política de traduções da sua obra redigida numa língua muito pouco divulgada (muito menos que o português, por exemplo), uma indiscutível repercussão no mundo inteiro.

Justifica-se, por isso, a tradução em inglês dos Ensaios Kierkegaardianos (este poderia ser, aliás, o texto do volume) de Eduardo Lourenço, acrescentando-se aos dois estudos referidos o capítulo de Heterodoxias “Sören Kierkegaard, espião de Deus (1813-1855). Repetição” e um ou dois manuscritos ainda inéditos (em rigor, trata-se de um texto com vários capítulos e de que há várias versões, uma delas que até foi visada pela censura salazarista, imagine-se!) que integrarão certamente um próximo volume das Obras Completas. É que uma das melhores formas de homenagear o pensamento e a obra de Eduardo Lourenço consiste, sem dúvida, em levar a sério uma concertada política de traduções dos seus textos e dos seus livros para outras línguas e, por maioria da razão, para inglês. Fica a sugestão de Ler Eduardo Lourenço, ao mesmo tempo que se anuncia a intervenção do ensaísta, juntamente com Guilherme d’Oliveira Martins, amanhã, quinta-feira, dia 19 de Setembro, pelas 18 horas na Biblioteca Nacional por ocasião da abertura da exposição “Um dinamarquês universal: Sören Kierkegaard”. Pelos motivos atrás anunciados e por todos os outros que os visitantes deste blog facilmente descobrirão, eis uma imperdível oportunidade para ouvir Eduardo Lourenço acerca do autor de Temor e Tremor, cujos livros, de resto, têm vindo, nos últimos anos, a ser objecto de cuidadas e corajosas traduções, trazidas a público pela editora Relógio d’Água.