António Guerreiro |
Em tempos não muito remotos, uma relevante figura da nossa
vida pública e cultural interrogava-se sobre quem estaria em condições de fazer
a Eduardo Lourenço a leitura crítica equivalente à que este, no final dos anos Sessenta, realizara a António
Sérgio. Se se quiser pôr o problema de outra forma, tratar-se-ia de procurar saber
quem estaria em condições de suceder ao autor de O Labirinto da Saudade no lugar cimeiro que este indiscutivelmente
parece ocupar no âmbito de uma certa concepção (pois é seguro que existem outras, porventura tão válidas como esta) do ensaísmo em Portugal.
Ora, como resposta possível a esse desafio, talvez não fosse totalmente absurdo apontar o caso
de António Guerreiro, tentando averiguar se este tem vindo, ou não, a desempenhar nos últimos vinte anos um papel comparável ao protagonizado por Eduardo Lourenço nos anos Sessenta e Setenta do século anterior.
Com uma formação universitária numa área de estudos que, outrora, se chamava Românicas (no caso, Português-Francês) e com uma brevíssima experiência como docente no ensino superior, António Guerreiro é sobretudo conhecido como crítico literário, tendo começado a colaborar no jornal Expresso em 1986 (tinha então apenas vinte e sete anos). Desde essa altura e até hoje, tem sido presença quase semanal nas cada vez mais reduzidas páginas literárias da imprensa lisboeta: primeiro, e durante décadas, no Expresso* e mais recentemente no suplemento semanal “Ípsilon” do diário Público, onde, para além de crítica literária, escreve uma coluna intitulada “Estação Meteorológica”. Embora dispersa, a sua produção como crítico e ensaísta é bastante vasta, estranhando-se (e lamentando-se), por isso, que tenha apenas um livro publicado: O Acento Agudo do Presente (Livros Cotovia, Lisboa, 2001) que, de resto, obteve Prémio do Pen Clube na categoria de ensaio.
Com uma formação universitária numa área de estudos que, outrora, se chamava Românicas (no caso, Português-Francês) e com uma brevíssima experiência como docente no ensino superior, António Guerreiro é sobretudo conhecido como crítico literário, tendo começado a colaborar no jornal Expresso em 1986 (tinha então apenas vinte e sete anos). Desde essa altura e até hoje, tem sido presença quase semanal nas cada vez mais reduzidas páginas literárias da imprensa lisboeta: primeiro, e durante décadas, no Expresso* e mais recentemente no suplemento semanal “Ípsilon” do diário Público, onde, para além de crítica literária, escreve uma coluna intitulada “Estação Meteorológica”. Embora dispersa, a sua produção como crítico e ensaísta é bastante vasta, estranhando-se (e lamentando-se), por isso, que tenha apenas um livro publicado: O Acento Agudo do Presente (Livros Cotovia, Lisboa, 2001) que, de resto, obteve Prémio do Pen Clube na categoria de ensaio.
É possível sublinhar brevemente três elementos comuns (haverá decerto outros) aos dois ensaístas, se descontarmos a especificidade do contexto, bastante diverso, em que cada um deles se começou a evidenciar na vida cultural portuguesa.Em primeiro lugar, uma relação algo difícil com a carreira universitária, o que fez com que Eduardo Lourenço não tenha concluído nunca o seu Doutoramento e recorde-se que um dos motivos por que abandonou Portugal tinha a ver, como tantas vezes refere, com a concretização desse projecto. António Guerreiro, por seu turno (e de acordo com uma informação colhida no site do projecto de investigação do qual é membro integrado), foi bolseiro durante três anos em Berlim (de 2001 a 2004) com o propósito de elaborar uma dissertação de Doutoramento sobre Walter Benjamin que ainda hoje parece estar por concluir. Quer num, quer noutro o exigente trabalho intelectual que realizam parece adequar-se melhor ao ensaio do que propriamente a textos mais longos, mas é possível que haja outras razões que contradigam esta hipótese.
Depois, encontra-se em ambos um muitíssimo actualizado leque de referências teóricas internacionais (no caso de Eduardo Lourenço, sobretudo francesas; no caso de António Guerreiro, também alemãs e italianas) que, embora não exibam com tiques de excessiva erudição, é claramente visível a quem faça uma leitura atenta dos seus textos. Deste modo, parece nítido que, enquanto Eduardo Lourenço mobiliza autores como Kierkegaard, Pessoa, Valéry ou Antero, as referências de António Guerreiro sejam mais Benjamin (tema do seu projecto de Doutoramento), Herberto Hélder, Deleuze, Derrida, Simmel ou Rui Nunes, autores que raramente comparecem nos textos do autor de Tempo e Poesia.
Por último, há nos dois escritores uma tendência intrinsecamente polemizante que se, em António Guerreiro parece inescapável (lembrem-se apenas os textos, publicados em períodos bastante diversos e de uma contundência inusual entre nós, sobre livros de João de Melo, Nuno Júdice ou Miguel Real), na obra de Eduardo Lourenço parece menos manifesta, mas que, afinal, também lá está. É o caso de ensaios conhecidos sobre Álvaro Ribeiro, José Régio, Miguel Torga ou António José Saraiva. E quem já se cruzou com alguns textos inéditos do espólio de Eduardo Lourenço pode garantir que outros tantos escritos polemicamente impiedosos ficaram (felizmente?) por publicar.
O texto “Pensadores e filósofos” que António Guerreiro hoje publicou no suplemento Ípsilon (e que, no fim de contas, é o pretexto imediato para as linhas que atrás se expuseram) é um belíssimo exemplo da singularidade do seu ensaísmo. Ler Eduardo Lourenço, aconselhando vivamente a leitura integral do artigo, não resiste a sublinhar algumas das suas teses mais interpeladoras. Partindo da generalização do termo pensador no espaço mediático português, António Guerreiro ensaia uma lúcida e aliciante desconstrução de «uma categoria que não existe com o mesmo sentido noutras latitudes culturais» e que, entre nós, talvez seja sintoma sobretudo de ausência de pensamento digno desse nome. A referência que, a dada altura, se faz no texto a Eduardo Lourenço é, por outro lado, bastante certeira. «Veja-se o que aconteceu a Eduardo Lourenço: como passou com armas e bagagens da filosofia para a literatura e como se pôs a “pensar Portugal” (como se ouve tantas vezes dizer), acabou por se tornar o nosso “pensador” por antonomásia, malgré lui, que merece muito mais do que esse epíteto e os equívocos e reverências que ele suscita». Com efeito, chamar “pensador” a Eduardo Lourenço num país que, se em tempos era “de poetas”, parece ser agora um “país de pensadores”, está longe de ser uma forma de destacar a importância do seu pensamento. Tal significa quase o mesmo (ou seja, pouca ou coisa nenhuma) do que dizer, para ilustrar este “modo de pensamento” com um acontecimento desta mesma semana, que «Eduardo Lourenço é uma luz»**.
Ora, pelo menos nos seus melhores momentos, o ensaísmo de Eduardo Lourenço acerca-se bastante do registo que António Guerreiro atribui ao discurso filosófico, onde «não há pensamento que não seja pensamento do pensamento, não há pensamento que não seja experiência da linguagem». E, se for esse o caso, a tese de que se terá simplesmente passado de armas e bagagens para a literatura parecerá tudo menos convincente. Dito de outra forma: Pessoa Revisitado, por exemplo, não é apenas um grande livro da crítica e do ensaísmo literários da cultura portuguesa contemporânea. É também um belo texto de filosofia.
Ora, pelo menos nos seus melhores momentos, o ensaísmo de Eduardo Lourenço acerca-se bastante do registo que António Guerreiro atribui ao discurso filosófico, onde «não há pensamento que não seja pensamento do pensamento, não há pensamento que não seja experiência da linguagem». E, se for esse o caso, a tese de que se terá simplesmente passado de armas e bagagens para a literatura parecerá tudo menos convincente. Dito de outra forma: Pessoa Revisitado, por exemplo, não é apenas um grande livro da crítica e do ensaísmo literários da cultura portuguesa contemporânea. É também um belo texto de filosofia.
António Barreto: sociólogo ou “pensador”? |
* A colaboração de António Guerreiro com o Expresso terminaria de
modo algo conturbado, tendo motivado até um abaixo-assinado, subscrito, entre outros, por José Gil, Gonçalo M. Tavares e ... Eduardo Lourenço (cf.
http://responderaomomentopresente.wordpress.com/2013/01/24/carta-sobre-o-afastamento-de-antonio-guerreiro-do-semanario-expresso/).
Registe-se ainda que António Guerreiro é, desde há muito, um dos leitores mais atentos e activos da obra de Eduardo Lourenço, tendo assinado, por exemplo, os seguintes textos: “Eduardo Lourenço e o mito da poesia”, Revista do Expresso, Lisboa, 19/III/1988, pp. 20-21; “Um movimento e as suas heresias”, Revista do Expresso, Lisboa, 10/III/1990, p. 62; “A Literatura e a sua sombra”, Suplemento Cartaz de Expresso, Lisboa, 21/V/1995, p. 18; “A Europa como cultura”, Suplemento Cartaz de Expresso, Lisboa, 27/V/1995; “O Ensaio como forma…e como consciência trágica”, Suplemento Cartaz de Expresso, 11/V/1996, pp. 20-21; “A regra em que vivemos”, Suplemento Cartaz de Expresso, Lisboa, 28/II/1998, p. 36; “Um enigma chamado Antero”, Suplemento Cartaz de Expresso, Lisboa, 5/V/2001, p. 54; “Lourenço, nome de heterodoxo”, Suplemento Actual de Expresso, Lisboa, 3/VII/2004, pp. 54-55; “Ver claro”, Suplemento Actual de Expresso, Lisboa, 26/I/2008, p. 45; “A poesia como crítica e conhecimento”, Relâmpago. Revista de Poesia, nº 22, Lisboa, Abril de 2008, Fundação Luís Miguel Nava, pp. 85-92; “Vocação: nómada. Condição: enraizado”, Suplemento Actual de Expresso, Lisboa, 31/V/2008, pp. 9-10; “Esquerda na encruzilhada ou fora da história?”, Suplemento Actual de Expresso, Lisboa, 25/IX/2009, pp. 36-37; “Temor e Tremor – Sören Kierkegaard”, Suplemento Actual de Expresso, Lisboa, 15/V/2010, p. 30; “O espírito da heterodoxia”, Suplemento Atual de Expresso, Lisboa, 17/XII/20011, p. 30; “Português e universal”, Revista de Expresso, Lisboa, 7/VII/20012, p. 81.
A António Guerreiro se devem também duas das entrevistas mais estimulantes realizadas a Eduardo Lourenço, a saber: “O drama da história”, com Francisco Belard, Suplemento Revista de Expresso, Lisboa, 23/IX/1995, pp. 80-87 e "Sou um dissidente da minha geração”, por António Guerreiro, Relâmpago. Revista de Poesia, nº 22, Lisboa, Abril de 2008, Fundação Luís Miguel Nava, pp. 49-63.
** http://expresso.sapo.pt/lourenco-e-tolentino-ii-a-fe-nao-esta-em-crise-ela-costura-a-vida=f831011