sexta-feira, 6 de julho de 2012

Negócios & reinos (pouco) heterodoxos

Ler Eduardo Lourenço admite a sua fraqueza semanal. Começa o seu weekend com a prazenteira leitura do suplemento homónimo do Jornal de Negócios. Fá-lo, aliás, respeitando os preceitos actuais de poupança e, quase envergonhado, confessa que retira o seu exemplar gratuito de uma banca estrategicamente situada numa esquina sombria dos corredores da Universidade. Sente-se quase economista, nessas alturas em que finge ler, com preocupação científica, que os Cortes nos salários vão ser para todos. Acomoda-se, por fim, numa esplanada e, enquanto espera que o café arrefeça, assalta o suplemento de fim de semana quase sempre com proveito. Hoje, não conseguiu evitar a leitura do texto de António Rego Chaves com o estranho título de No reino da heterodoxia, uma página inteira dedicada não, como seria eventualmente de esperar, ao pensamento de Eduardo Lourenço, mas, sim, a um livro (publicado em... 2008!) de Miguel Real. O artigo que, de resto, está também disponível em formato electrónico (https://sites.google.com/site/incensuraveisrecentes/miguel-real-eduardo-lourenco-e-a-cultura-portuguesa), merece talvez algumas considerações.
Em primeiro lugar, não estará o articulista contaminado pela maleita do que ele mesmo chama «jovens ensaístas encandeados pelo anacronismo histórico»? Não se trata de dizer que um livro como Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa, mais de quatro anos após a sua edição, tenha esgotado todo o seu poder interpelativo. Pelo contrário. Apesar da sua larga consagração pública (recorde-se que ao livro foi atribuído o Prémio Jacinto do Prado Coelho, da Associação Portuguesa de Críticos Literários) muitas das suas teses talvez não tenham merecido a discussão que, quer a sua originalidade, quer a sua acutilância, exigiriam. O anacronismo deste No reino da heterodoxia poderia, por isso, ser apenas aparente, caso nos ativéssemos somente à data do livro recenseado. Tanto mais que, na página seguinte, Fernando Sobral faz a crítica de quatro (!) obras de ficção, todas elas dadas à estampa em ... 2012! No poupar é que está o ganho.

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Um importante livro editado em ... 2008!


Mas o assunto é o artigo No reino da heterodoxia”. Este lapso temporal, semelhante ao de um ciclo olímpico, poderia ter dado ao recenseador a oportunidade de reflectir e questionar – ou até de ajudar a encontrar melhores alicerces para elas – as hipóteses de leituras avançadas por Miguel Real. Infelizmente não o faz. Dois exemplos, apenas.

1. «Salienta Miguel Real que “a principal característica do pensamento de Eduardo Lourenço, a partir da segunda metade da década de 1950, reside, pela negativa, no abandono dos estudos filosóficos de carácter académico, enquanto especialização universitária e, pela positiva, no empenhamento estético-cultural que rodeia a sua actividade como pensador que assume a história da literatura portuguesa como principal fonte de inspiração. Já em 1951, aliás, se demarcara daqueles a quem chamou “os racionalizadores, os ordenadores da coerência sintáctica, os cientistas da abstracção sem a carne e o sangue da história e do sofrimento do homem (…) neste nosso século em que a razão professoral invadiu o homem. Uma frase diz quase tudo: “A questão [Fernando] ‘Pessoa’ é, para Eduardo Lourenço, do domínio ontológico e para a Universidade do domínio literário. Segundo o autor, a consciência de uma “ínsita irrealidade do mundo, adquirida no profundo encontro com a poesia de Orpheu (“a experiência mais radical de quantas a história da nossa poesia dá conta) levá-lo-á a encarar a Poesia como “uma realidade absoluta, cujo estatuto substitui hoje, na consciência dos povos, o conteúdo das tradicionais mitologias e religiões europeias» [António Rego Chaves, No reino da heterodoxia”, Suplemento Weekend de Jornal de Negócios, 6/VII/2012, p. 20] .

Esta tese de Miguel Real afigura-se, no mínimo, discutível. É que convém recordar que o segundo volume de Heterodoxia, publicado em 1967 (embora com textos escritos anteriormente), inclui ensaios sobre o existencialismo, Kierkegaard, Camus, pelo que talvez seja demasiado ousado defender a ideia de que «a partir da segunda metade da década de 1950» se possa falar, no caso de Eduardo Lourenço de um «abandono dos estudos filosóficos de carácter académico». Ora, António Rego Chaves aceita esta interpretação de Miguel Real. E, registe-se, está no seu pleníssimo direito. Mas é curioso que, no artigo, se omita por completo que entretanto (em 2011, mais precisamente) Eduardo Lourenço editou Heterodoxias, o primeiro volume das suas Obras Completas que, como se sabe, reúne ensaios (escritos desde 1945 até 2010!) que, sem grande risco de equívoco, se podem considerar textos filosóficos. Miguel Real em 2008 não o poderia adivinhar, claro. Mas será esse o caso do seu anacrónico recenseador quatro anos volvidos?

2. «Adverte Miguel Real: “O nosso ensaio debruça-se exclusivamente sobre as duas primeiras fases da heterodoxia: 1.ª fase: heterodoxia aplicada à identidade cultural de Portugal: 1949-1978; 2.ª fase: heterodoxia aplicada à identidade cultural da Europa: 1980-1997. A 3.ª fase, a heterodoxia aplicada à cultura americana, será por nós objecto de um estudo a publicar com o título ‘O Último Eduardo Lourenço’.” Estamos à espera.» [António Rego Chaves, ibidem].

Ler Eduardo Lourenço confessa que a expressão heterodoxia aplicada lhe parece ser, por si só, bastante enigmática. Os seus supostos objectos de aplicação não o são menos. Mas seria especialmente estimulante que António Rego Chaves esclarecesse o que significa tão definitiva advertência. Ora, tal não sucede. Ler Eduardo Lourenço promete que, também ele, continuará à espera. Talvez num dos próximos weekends o mistério seja desvendado. E, ao contrário do que sucedeu no caso dos cortes dos salários, ter esperança não parece ser inconstitucional.