terça-feira, 18 de novembro de 2014

Francisco José Tenreiro

Em texto de 1988 que merece ser revisitado (e também discutido, mas isso é outra conversa), Eduardo Lourenço apresenta uma das suas fulgurantes sínteses, escrevendo: «Toda a leitura retrospectiva é, por essência, alucinatória». Eis aqui um programa imenso, sobretudo porque se trata de uma afirmação de alguém que, dez anos depois, confessará: «Do que eu gostava era de História. Essa é que era a minha grande paixão. Desde garoto. Em vez de ro­mances, na minha juventude lia sobretudo livros de História e enciclopédias. Ainda hoje, a História é uma paixão para mim» (1998). Muito do que está em jogo no ensaísmo de Eduardo Lourenço é possível que se mova entre estes dois pólos: história e paixão. Ou, se se preferir, retrospectiva e alucinação.

Capa do primeiro livro de Francisco José Tenreiro, à venda hoje em impressão fac-similada com a edição do jornal Público
Nas magníficas colecções que o jornal Público tem vindo a dedicar a clássicos da literatura em língua portuguesa talvez haja também qualquer coisa de alucinatório. Por exemplo, quem adquirir, hoje mesmo com a edição do jornal, Ilha de Nome Santo, o número nove da colecção Novo Cancioneiro que o poeta são-tomense Francisco José Tenreiro publicou em 1941, está a embarcar, mesmo sem querer, numa viagem no tempo para se encontrar com um livro que, noutras circunstâncias, seria sempre um título de alfarrabista. E, para além disso, um título surpreendente, pois que faz o primeiro volume de poesia de Tenreiro na emblemática colecção do neo-realismo de Coimbra?
Em Sentido e Forma da Poesia Neo-realista (cuja nova edição, revista e ampliada com outros ensaios, lançada na semana passada em Coimbra, será apresentada em Lisboa já no próximo dia 18 de Dezembro, na Fundação Calouste Gulbenkian), Eduardo Lourenço, falando sobre a poesia de Joaquim Namorado, refere-se também a Ilha de Nome Santo em termos que vale a pena recordar:
«O poema que fecha Aviso à Navegação [de Joaquim Namorado] (...) quase se diria deslocado entre os seus pares e no entanto é a sua presença que acaba por conferir ao conjunto uma significação que de algum modo o transcende, subtraindo-o à históriada poesia “metropolitana” propriamente dita. É o destino africano em geral, a evocação mítica de uma África que anuncia a sua vinda no plano da História que Joaquim Namorado “canta”. Em 1941, a temática africana estava ainda nos limbos. Em todo o caso, os poetas brancos, metropolitanos, estavam pouco sintonizados com a “presença africana” ou com a sua “ausência”... Como qualquer coisa de insólito, publicará a mesma série do “Novo Cancioneiro” um livro de poemas de Francisco José Tenreiro, intelectual mestiço, com posterior destino bem pouco “neo-realista”. Através do poema de Namorado e do livro de Tenreiro a realidade africana começa a subtrair-se na nossa consciência cultural (como o será nos romances de Castro Soromenho mais a fundo ainda, numa linha que se continuará até Alfredo Margarido passando por José-Augusto França) à perspectiva folclorizante. Esta perspectiva era aliás normal, pois correspondia ao estatuto da África como objecto de presa real ou imaginária, mas não sujeito de História.No plano internacional serão os Guillén, os Senghor, os Césaire que incorporarão a música da alma e do corpo africano à história da poesia ocidental. Dos três, só Guillén é então conhecido. Todos descobrem “África” porque, cubanos, martininquenses ou senegaleses, são “África” e ao mesmo tempo culturalmente ocidentais. É evidente que não é deste modo que a África aparece no horizonte do poeta coimbrão Joaquim Namorado. Ele próprio nos diz que essa África que o fascina e cujo destino escravo o revolta é

Descoberta do acaso
das minhas navegações.


Mais surpreendente é, pois, o ter colhido não só o ritmo de uma evocação adaptado à linguagem que a África se fala, como o sentido da aventura de que a mesma África é, há séculos, ocasião. O essencial, porém, é a clara percepçãode que o canto de África é obrigatoriamente crítica europeia, o que abre na nossa poesia uma estrada que raros percorreram tão cedo» (Sentido e Forma da Poesia Neo-realista e outros ensaios, Lisboa, Gulbenkian, 2014, pp. 144-145).

Francisco José Tenreiro (1921-1963)


Mesmo que a interpretação sobre a poesia de Joaquim Namorado justifique por si só atenção, o assunto de hoje é o livro de «Francisco José Tenreiro, intelectual mestiço, com posterior destino bem pouco “neo-realista”». Que quererá Eduardo Lourenço dizer com a expressão destino bem pouco “neo-realista”? Num óptimo texto de apresentação de Ilha de Nome Santo, Inocência Mata relembra que Tenreiro «acabaria por aceitar um lugar de deputado na Assembleia Nacional, o que o afastaria dos seus companheiros da Geração de Cabral, expressão da lavra do angolano Mário Pinto de Andrade, pelo facto de todos terem tido um papel importante na história dos seus países» (“Para além da matéria insular”, Público, 16/XI/2014, p. 63). No entanto, será Ilha de Nome Santo, independentemente do ulterior percurso político do seu autor, um livro neo-realista?
Alfredo Margarido, também nomeado por Eduardo Lourenço no passo atrás citado, assinalará anos mais tarde aquilo a que chama «o carácter relativamente irrisório da denúncia» do poeta são-tomense, dado que este «reivindica a sua condição mais física do que cultural de mestiço, colocando-se não numa posição francamente reivindicativa mas na situação ambígua, branco quando ama a branca, negro quando ama a negra» (Estudos sobre Literaturas das Nações Africanas de Língua Portuguesa, Lisboa, A Regra do Jogo, 1980, p. 122). Inocência Mata não parece partilhar esta visão de Margarido, pois sublinha que a «capacidade de fazer dialogar diferenças e até antagonismos (...) faz de Francisco José Vasques Tenreiro um “inventor” da modernidade são-tomense».
Ler hoje Ilha de Nome Santo é, assim, uma experiência algo peculiar. Pode não ser esta a mais inspirada poesia da colecção Novo Cancioneiro, mas ilustra sem dúvida aquilo a que Eduardo Lourenço chama a insólita presença africana na literatura coimbrã dos anos Quarenta.

foto de Ler Eduardo Lourenço

Veja-se, a mero título de exemplo, estes versos de Canção do Mestiço:

Mestiço!
 

Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como que se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
ficando baralhando côr
no ôlho alumbrado de quem me vê
.
(p. 19)