A que geração pertence Eduardo Lourenço? A questão talvez seja mais relevante do que tentar cumprir uma mera tarefa de arrumação da sua obra nas prateleiras da história da cultura portuguesa contemporânea. É costume dizer-se que o autor de Heterodoxias é enquadrável no horizonte das chamadas filosofias da existência. Num certo sentido, esta leitura é correcta, desde logo porque a crítica kierkegaardiana ao sistema de Hegel desempenhou um papel decisivo nas modalidades mais importantes do ensaísmo de Eduardo Lourenço. No entanto, no caso específico de Eduardo Lourenço, a Kierkegaard tem de se associar sempre Fernando Pessoa e não é absolutamente líquido que a grelha de leitura existencialista seja de grande préstimo para o modo como o ensaísta visou compreender o drama em gente pessoano naquilo que este tem de compreensível.
Outra hipótese consistiu, para alguns olhares porventura menos atentos, em integrar Eduardo Lourenço no neo-realismo. No entanto, a imagem de conjunto que o II Volume das Obras Completas dá agora das relações que o jovem estudante de Filosofia manteve com o grupo coimbrão do seu Amigo Carlos de Oliveira convida que se faça uma interpretação diferente.
Numa carta (meio aberta) que dirigiu a outro seu Amigo, Urbano Tavares Rodrigues, Eduardo Lourenço parece brincar um pouco com este tema e ensaia definir a sua geração como aqueles que, tal como Urbano e ele próprio, nasceram no exacto ano de 1923, escrevendo: «De comum o termos nascido em 1923, ano da morte de [Guerra] Junqueiro, creio, que era um Deus republicano e também ano de uma grande bancarrota. É o ano de Eugénio [de Andrade], de [Mário de ] Cesariny, de Natália [Correia] , de [António Manuel] Couto Viana, de Luís Amaro, de ti, entre outros, todos tão diferentes que não sei quem os possa imaginar na mesma geração. Mas devemos tê-lo sido» (“Carta (meio aberta) ao Urbano”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 634, Lisboa, 1/II/1995, p. 45.)
Urbano Tavares Rodrigues |
Mário de Cesariny pertencerá à mesma geração de... |
António Manuel Couto Viana? À primeira vista, só mesmo se se adoptar um critério estritamente cronológico... |
Claro que é possível fazer outras aproximações ao problema. Por exemplo, se é verdade que Eduardo Lourenço começou por se afastar do (ou talvez melhor, por nunca pertencer ao) grupo neo-realista muito por força de alguma influência do presencismo, sobretudo na sua versão torguiana (como se sabe, ela também bastante peculiar), também não deixa de ser inegável que o jovem ensaísta depressa parece ter procurado outras paragens. Para essa decisão muito terá contribuído a influência da fenomenologia husserliana e não é decerto por acaso que, em A Criação do Mundo, Miguel Torga (nascido em 1907 e com uma muito rápida consagração literária) fala de um jovem pertencente a uma nova geração, um tal «Edmundo Lucena, assistente de filosofia, a respirar inteligência e inquietação». Por outro lado, importa não esquecer que o primeiro livro de Eduardo Lourenço, Heterodoxia I, foi impresso e publicado muito por influência editorial de Torga. Por seu turno, Eduardo Lourenço viria a escrever, em 1955, O Desespero Humanista de Miguel Torga e o das Novas Gerações, ensaio no qual são já visíveis algumas dissemelhanças no modo como ambos vêem o fenómeno estético.
Mais tarde, o ensaísta, no prefácio de Tempo e Poesia, magnífico livro de 1974 em torno do qual se organiza o III Volume das Obras Completas (coordenado por Carlos Mendes de Sousa e com saída prevista para o primeiro semestre do próximo ano), procura erguer aquilo a que chama Balizas para um itinerário sem elas. Vale a pena, por isso, recordar o passo seguinte onde se fala do modo como o método fenomenológico terá permitido a Eduardo Lourenço percepcionar alguns dos limites que desde cedo viu no presencismo. Para o bem e para o mal. Para o bem, porque isso lhe permitiu enveredar por trajectos novos e originais. Para o mal, porque isso o impediu de pertencer a uma verdadeira geração literária. A não ser talvez à sua imaginária geração de 1923.
Mais tarde, o ensaísta, no prefácio de Tempo e Poesia, magnífico livro de 1974 em torno do qual se organiza o III Volume das Obras Completas (coordenado por Carlos Mendes de Sousa e com saída prevista para o primeiro semestre do próximo ano), procura erguer aquilo a que chama Balizas para um itinerário sem elas. Vale a pena, por isso, recordar o passo seguinte onde se fala do modo como o método fenomenológico terá permitido a Eduardo Lourenço percepcionar alguns dos limites que desde cedo viu no presencismo. Para o bem e para o mal. Para o bem, porque isso lhe permitiu enveredar por trajectos novos e originais. Para o mal, porque isso o impediu de pertencer a uma verdadeira geração literária. A não ser talvez à sua imaginária geração de 1923.
Miguel Torga |
«Se o reduzirmos ao essencial e o considerarmos à parte dos seus acertos concretos e da sua paixão exemplar pela realidade literária, o “presencismo” crítico resumia-se na afirmação e defesa intransigente do que os seus teóricos chamavam a especificidade da literatura. Não era uma atitude original em si mesma, mas era original e inovadora na história da nossa consciência literária pelo grau, coerência e ressonância que os seus defensores lhe emprestavam. A ela aderiu sem custo a minha juvenil ideologia crítica, ajudada e reforçada não só pela experiência da unidade da obra poética (em sentido largo) que me era própria, como pela descoberta nos bancos universitários do método da exegese filosófica, então novo entre nós, da Fenomenologia. Na determinação e estruturação consequente dessa especificidade do fenómeno literário não ia o “presencismo” muito longe. O conceito tinha sobretudo um perfil negativo, uma função de recusa contra uma outra concepção crítica que começara nos anos 30 a manifestar-se com relevo e será nos fins deles e começos dos anos 40 a articulada e expansiva ideologia crítica “neo-realista”. À maneira de Croce, o “presencismo” opõe Literatura a tudo o mais, como o filósofo napolitano que Fidelino de Figueiredo – por sinal bem mal amado pelos “presencistas” – havia traduzido, opunha o conceito à intuição. Mas a intuição que a obra é, tanto como aquela que por sua vez devém para o seu usufruidor, é uma intuição concreta, cujo segredo (e mesmo cujo conteúdo, metamorfoseado) não é outro que o do espírito do seu criador, na plenitude, porventura inacessível, da sua complexidade psíquica. Como em Croce, suscita a crítica presencista – nos seus melhores cultores – uma teoria da expressão. Um eu, não separado do mundo e seus problemas, como polemicamente foi moda dizer-se, mas nele imerso e dele distinto, exprime o laço original que o religa à realidade quando efectivamente é capaz de criar o que por essa originalidade mesma merece ser dito opera, obra, criação. Lidos em Proust e algo em Freud, bem sabiam os “presencistas” e muito o afirmaram teoricamente, mesmo os que na prática crítica disso se esqueceram às vezes, que tal eu não é o eu empírico, mas o proustiano “eu profundo”. Apesar disso ou por causa disso, o horizonte presencista definiu-se como pertencendo ao que o fundador da Fenomenologia rotulou de psicologismo.»
(“Prefácio. Crítica e Metacrítica. Balizas para um itinerário sem elas”, Tempo e Poesia, Porto, Editorial Inova, 1974).
(“Prefácio. Crítica e Metacrítica. Balizas para um itinerário sem elas”, Tempo e Poesia, Porto, Editorial Inova, 1974).