segunda-feira, 14 de julho de 2014

14 juillet 1789*



A burguesia tinha plena consciência de que todas as armas 
que forjara contra o feudalismo se voltavam agora contra ela, 
que todos os meios de instrução que instituíra se rebelavam 
contra a sua própria cultura, 
que todos os deuses que havia criado a abandonavam.  
Karl Marx, O 18 de Brumário
Não voltarão atrás sem conhecer o extremo desastre. 
Hölderlin, Poesias






Em sentido moderno, o fenómeno revolucionário, quer seja de ordem religiosa, social ou política, só existe como resultado de uma prévia desconstrução, teoricamente bem elaborada, dos princípios e dos valores sobre que assenta a sociedade que se deseja reformar ou radicalmente subverter. 
É por isso que só por anacronismo ou analogia prospectiva chamamos revoluções a processos de convulsão cívica ou de mudança dos quadros dirigentes de uma sociedade a que falta, por desnecessário ou ainda impossível, o lastro de uma vasta e prévia contestação, conscientemente formulada, do funcionamento e das regras do jogo que a regem. É o caso, no que respeita ao nosso próprio passado, das bem mal chamadas “revoluções de 1383” ou da “revolução de 1640”. Mais conforme com o estatuto revolucionário, pela osmose entre “ideia” e “acontecimento”, seria a nossa revolução liberal de 1820, embora o seja mais pelo destino diferido, que será o seu, do que pela sua imediata manifestação, apesar da ruptura institucional que inaugurou. 
De todas as nossas “revoluções”, a única que merece esse nome pela longa, embora intermitente incubação e elaboração mítica que a precedeu, tanto pela forma radicalizante que tomou, uma vez vitoriosa, foi a que institucionalizou a República. Na óptica de lógicas futuras que lhe não convém, foi moda considerar “formais” os traços de ruptura com a antiga ordem monárquica. Foram mais do que isso. Se o não tivessem sido não se teriam convertido num dado adquirido da nossa simbólica política, a tal ponto que nem o lado “contra-revolução” próprio do que a si mesmo se chamou Estado Novo, os pode rasurar. De análoga vontade de ruptura e radicalidade – até mais extremadas – se revestiu por assim dizer, a posteriori, a recente e já tão longínqua “revolução das flores”. Mas nem fora preparada para o que, em certo momento, pareceu ser, nem a sociedade portuguesa estava disposta a aceitar, com cinquenta anos de atraso, o que, visivelmente, estava já em fase de recessão sob o plano utópico, ideológico e histórico. 
As revoluções são raras. Embora se empregue essa categoria histórico-política ou ideológica, para as grandes comoções de ordem económica e social que, num lapso de tempo geralmente curto, espasmódicas, subvertem as relações do poder e as situações de privilégio de uma sociedade artificial e anacronicamente anquilosada nas suas práticas e modos de funcionamento, acaso os únicos fenómenos que merecem este nome são os que alteram em profundidade a maneira de ser, de pensar e ver de uma sociedade inteira ou de uma época. Nesse sentido só os grandes movimentos religiosos, de que a Reforma foi o arquétipo para a Idade Moderna, são revoluções duráveis. Justamente, as revoluções políticas e sociais que exerceram ainda uma influência indiscutível sobre o destino dos homens, qualquer que seja a leitura que se faça de tal influência, são fenómenos dessa ordem, se não no conteúdo pelo menos na forma, tanto a Revolução Francesa como a Revolução de Outubro para além da subversão das relações de poder e dos laços sociais que engendraram, pretenderam ser uma espécie de “revelação” sem transcendência, uma encarnação de uma nova maneira de ser sociedade ou ser “humanidade”. Os famosos “desvios” de que são exemplo o Terror e o Arquipélago do Gulag, não são excrescências ou acidentes num projecto que não devia comportá-los, mas a bem fatal consequência da transgressão sobre o plano da prática histórica de uma “religiosidade” inerente a projectos de reforma de carácter messiânico. A fórmula célebre de S. Paulo da metamorfose do “velho homem” (o homem do pecado, da alienação), em “homem novo” foi proposta em termos teóricos pelas duas grandes tentativas revolucionárias do Ocidente. O resultado não foi encorajador, sobretudo para a segunda grande revolução que abalou o mundo sem verdadeiramente o transformar. 
Porventura a razão profunda do fracasso clamoroso da Revolução Soviética, à primeira vista incompreensível, resulta do facto de que contrariamente à Revolução Francesa, desejou encarnar uma ideia em si complexa e profunda, numa sociedade que não lhe dera nascimento. Só na consciência de uma minoria, a “ideia” precedera a passagem ao acto. O voluntarismo paga-se caro. 
O que não entrou naturalmente pela porta sai agora pelas janelas, pelos telhados, através de muros que pareciam intransponíveis. Milhões de vidas pagaram a desfasagem entre a ideia e a realidade que ela devia transfigurar. O famoso comboio da história sem bilhete de regresso está agora parado em pleno deserto. Aparentemente não ia para nenhum futuro que de longe ou de perto encarnasse as promessas, à primeira vista plausíveis, e humaníssimas da utopia. Falência humana ainda susceptível de remissão, ou definitivo naufrágio da própria utopia? A questão é saber se a humanidade não é intrinsecamente utopista. Pelo menos a nossa de ocidentais. Que espécie de “utopia” nascerá da utopia marxista defunta? 


* No ducentésimo vigésimo quinto aniversário da Revolução Francesa, Ler Eduardo Lourenço recupera um ensaio escrito por Eduardo Lourenço há vinte cinco anos e publicado na revista Finisterra com o título “A Revolução e a sua ideia”. Nesse mesmo ano, Eduardo Lourenço redigiu “O tempo da revolução” (Revista de Expresso , Lisboa, 1/VII/1989, pp. 18-19). Como se pode ver, as considerações do autor sobre o conceito de revolução não perderam actualidade.