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José Cândido Oliveira Martins |
Em Outubro de 2011, foi organizada uma
merecidíssima homenagem a Eduardo Lourenço, reunindo um assinalável número de
especialistas da obra do reconhecido ensaísta. A iniciativa pertenceu à
Universidade de Paris – Sorbonne (Paris IV), através do centro de investigação
CRIMIC, e em associação com a Delegação da Fundação Calouste Gulbenkian em França.
Sob a forma de colóquio internacional, a referida
homenagem materializou-se no presente volume, tendo ambos a dinâmica
organização da investigadora Maria Graciete Besse, que assina a indispensável
“Note liminaire” (p. 9-15) deste livro, em honra da figura maior da cultura
portuguesa. Tendo publicado uma obra muito influente, iniciada em 1949 com o
ensaio Heterodoxia e prolongada até
aos nossos dias em cerca de duas dezenas de títulos, o impacto de Eduardo Lourenço atravessou as
fronteiras nacionais, sobretudo no espaço da lusofonia. Em Portugal, além de
homenagens diversas, o autor tem sido objecto de vários estudos académicos, bem
como de volumes monográficos de revistas.
Agrupando tematicamente as catorze
intervenções, de estudiosos provenientes de diversos países, o volume
estrutura-se em cinco partes, “L’intellectuel Eduardo Lourenço”; “La
question de l’Europe”; “Repenser l’identité portugaise”; “La fascination de la
littérature”; e “La réjouissance de la pensée”. De permeio, deparamo-nos com um
“Cahier de photographies d’Eduardo Lourenço / Lettre inédite”, endereçada a
Miguel Torga e datada de 1957 (pp. 113-135); e a terminar, uma breve
intervenção autor homenageado, seguida de um breve quadro do seu percurso
biográfico (pp. 219-232).
Como sugerido, esta obra procura abarcar a
riqueza temática da produção ensaística de Eduardo Lourenço, assinalando
algumas das grandes dominantes da sua heterodoxa escrita reflexiva, marcada
“par la passion de l’humain”, como assinala a organizadora. O reconhecimento de Eduardo Lourenço fora de
Portugal é exemplificado por Cleonice Berardinelli, entre outros. Lembrando a
estada do ensaísta no Brasil e ao salientar a admiração suscitada pelo
pensamento do intelectual homenageado, através da relevância ímpar da sua
vocação ensaística para os estudiosos da cultura e da literatura portuguesas, a
distinta investigadora carioca rememora emotivamente a atribuição do
doutoramento honoris causa a Eduardo
Lourenço pela Univ. Federal do Rio de Janeiro em 1995.
Num segundo momento, destaca-se o
pensamento do escritor sobre a questão da Europa, axial no labor do ensaísta.
Desde logo, toda a reflexão crítica sobre o projeto europeu e o seu potencial,
nomeadamente em contextos de crise, revela-se oportuníssima e fecunda, nas
palavras de António Vitorino, ex-Comissário Europeu. Ao mesmo tempo, não é
possível pensar a imagem da Europa idealizada e plural fora de uma mitografia
específica, aliás essencial na interrogação ontológica sobre Portugal e a sua hiper-identidade
nacionalista (Miguel Real). De facto, Eduardo Lourenço desenvolveu um
pensamento “euro-excentrique”, destacando a “mythologie européenne”, ao mesmo
tempo, ao pensando o diálogo assimétrico entre a utopia europeia e o percurso
do Portugal contemporâneo – ler Portugal “en forme de quiasme” ao espelho da
Europa (Roberto Vecchi). Neste domínio, é possível demarcar fases de evolução
do pensamento lourenciano: primeira, uma Europa “pensée en fonction du
Portugal”, a partir de uma matriz iluminista e da visão pessimista da Geração de 70; depois, um pensamento
“autonome sur l’Europe”, nas palavras de José Eduardo Franco: “Eduardo Lourenço
est donc l’illustre héritier de ce courant qui cherche à établir le diagnostic
et l’analyse de la situation portugaise face au paradigme progressiste de
l’Europe” (p. 72).
Consabidamente, outra das linhas de força
do ensaísmo de Eduardo Lourenço detém-se continuadamente sobre a questão fundamental
da identidade portuguesa. Para Guilherme d’Oliveira Martins, o pensamento lourenciano sobre a “aventura
portuguesa” é indissociável da herança romântico-oitocentista e, em particular,
da influente Geração de 70, ao
equacionar os mitos configuradores da ideia de “Portugal como destino”. Neste
contexto, e a partir do desafio de Manuel de Oliveira, há quem se interrogue
sobre o ensaísmo de Eduardo Lourenço enquanto “écrivain postmoderne”, na sua
obsessão de explicar Portugal e a questão identitária, em contraponto com
Espanha, como o faz João Tiago Pedroso de Lima, um dos responsáveis pela edição
crítica, em curso, da obra completa de Eduardo Lourenço.
As sucessivas indagações lourencianas em
torno do “labyrinthe de l’identité” inserem-no numa “longue et três riche
tradition de l’éssai d’auto-gnose, commun parmi les grandes figures du monde
ibéro-américain” (p. 100), como destaca Onésimo Teotónio de Almeida. Porém,
seguindo a fundamentada argumentação deste investigador, impõe-se a necessidade
de desfazer alguns equívocos; e, sobretudo, de não vincular o ensaísmo de Eduardo
Lourenço a um contestável pensamento essencialista sobre a cultura ou
“filosofia portuguesa” – associada a certos intelectuais conservadores –, como
parece ser a tentação de certa perspetiva “científica”, ideológica e crítica da
sociologia atual. Em todo o caso, neste domínio, há diferenças significativas
entre os pontos de vista de Boaventura Sousa Santos ou de Ingemai Larsen, entre
outros.
Um outro filão que manifestamente
atravessa o pensamento de Eduardo Lourenço é o seu fascínio pela literatura, destacando-se
alguns autores e obras numa recorrente biblioteca afetiva – de Camões a Pessoa,
passando Eça Queirós, Antero, Oliveira Martins e tantos outros, sem esquecer vários
contemporâneos. Ora, entre essas figuras tutelares, avulta Camões, mais o épico
do que o lírico. Ao longo de uma vintena de ensaios, de 1967 a 2008, como
analisado por Ángel Marcos de Dios, sobressai a figura do “essayiste de la vie portugaise quotidienne et de sa
conscience civique” (p. 140), em que Camões é indissociável do ensaísmo
lourenciano sobre a consciência e identidade portuguesa, bem como sobre a
dimensão iberista, presente quer no autor de Os Lusíadas, quer no próprio Eduardo Lourenço. Enfim, das revisitações do Poeta e do Livro, sobressai a
figura de “Camões, héros, image et héraut d’un peuple entier” e sobretudo “la
conscience aiguë de son temps historique comme le temps de l’agonie des
propres valeurs heroïques qui lui servaient de référence” (pp. 145, 153).
O universo pessoano ressalta como outra
das grandes obsessões do ensaísta,
constituindo objeto de eloquente reflexão para Robert Bréchon. Para este reconhecido estudioso, que nos deixou em 2012, evoca o seu percurso de devoção pela obra de Pessoa, a partir de Pessoa Revisitado. Segundo Bréchon, o ensaísmo de Eduardo
Lourenço operou uma profunda revolução hermenêutica nos estudos pessoanos, pela
extraordinária perspicácia das suas propostas críticas, desde o “drama em
gente” heteronímico à leitura do Livro do
Desassossego – e tudo servido “d’une finesse et d’une justesse parfaite”
(p. 161).
Eduardo Lourenço revelou-se também um
agudo crítico de poesia, quer sobre a sua trindade poética (Camões, Antero e
Pessoa), quer acerca de outras vozes. Sobretudo a partir de Tempo e Poesia, configura-se uma
singular “poética” de acentuada argúcia e densa “expression philosophique”,
como ilustrado por Nuno Júdice. Poesia concebida como palavra intemporal e
enigmática, expressão do mistério e do silêncio e, sobretudo, como “iluminação”
ou fonte de claridade, nomeadamente no contexto específico do “tempo
português”: “(...) la question du temps de la poésie dans la relation avec le
temps de l’Histoire: une relation toujours paradoxale car un rapprochement
excessif détruit solvent l’autonomie du poétique” (p. 172). Igualmente Vasco
Graça Moura, sob a sugestão de R. M. Rilke, destaca a enriquecedora experiência
da leitura da crítica poética de Eduardo Lourenço, sempre inovadora ao propor
“un dialogue incessante avec les arts de la parole d’autruit”, desvendando
sempre “dimensions insoupçonnées” (p. 176).
Por fim, “penseur fascinant et fasciné”
(na palavra de Mª Graciete Besse), o ensaísmo do autor de Nós e a Europa, ou as duas razões filia-se numa multissecular
matriz europeia (de Montaigne e Bacon), já que o seu pensamento, historicamente
inscrito numa moderna e humanista República das Letras – como exposto por
Helena Buescu – se mostra umbilicalmente “héritère d’une longue lignée de
pensée de souche européenne, caractérisée par son ouverture médiatrice et sa
capacite dialogale” (p. 186). Vocação congenialmente ensaística, em diálogo e
revisitação crítica constante, numa permanente tensão e heterodoxia
argumentativa, “Eduardo Lourenço revisite et transforme [la tradition], par son
constante inquietude réflexive” (p. 189).
Também não poderia faltar uma reflexão que
destacasse o contributo do escritor para o pensamento pós-colonial, a partir da
revisão crítica sobre conceitos de identidade, imaginário e mito que plasmaram
certa perspetiva do Portugal imperial e pós-imperial. Para Maria Manuel
Baptista, uma das vertentes do ensaísmo lourenciano reside justamente na
análise e desconstrução de certa “mythologie impériale” cara ao Estado Novo, “mythes
de peuple découvreur, non violant, non colonialiste, civilisateur et,
surpassant toute possibilité de racisme, capable de se mêler aux races
autochtones, pour créer le mulâtre” (p. 199). Assim se questiona expressamente
a enraizada ideia cara ao regime, de “génie civilisateur des Portugais”, legitimando
de forma reiterada, na retórica oficial do salazarismo, a sua missão
civilizadora e evangelizadora. O mesmo afã desmitificador estende-se à ideia de
uma “décolonisation exemplaire”, na hora de regresso à original casa lusitana.
Do que fica sugerido, pode concluir-se
estarmos perante um volume de significativa e justíssima homenagem de
estudiosos da obra lourenciana, por um lado; e por outro, diante de uma obra
que, a partir de agora, constituirá importante referência na mais atualizada
bibliografia crítica sobre o pensamento absolutamente fundamental de Eduardo
Lourenço.
* José Cândido Oliveira Martins é Professor Associado na Universidade
Católica Portuguesa, onde ensina e investiga nas áreas de Teoria da
Literatura e História da Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, entre
outras. O texto que aqui hoje se apresenta é a recensão crítica a Eduardo Lourenço et la Passion de l‘Humain, Paris,
Éditions Convivium Lusophone, 2013 (232 pp.) publicada em Colóquio-Letras,
186, Maio/Junho 2014, pp. 269-272. Refira-se que este volume organizado por Maria
Graciete Besse, e do qual já se falou anteriormente neste blog, está praticamente esgotado, estando prevista uma nova edição.
Ler Eduardo Lourenço agradece a simpática
colaboração de José Cândido Oliveira Martins.