sexta-feira, 2 de setembro de 2011

No mundo como devir*

por António Pedro Pita

E qual é a sua cidade?
Nenhuma. O meu Paris Texas é São Pedro do Rio Seco

Eduardo Lourenço, em entrevista a Francisco Belard e Vicente Jorge Silva


Eduardo Lourenço é, ele próprio, a ficção inventada por Wim Wenders sob o título “Paris-Texas”: quem impôs o ensaio como efetivo modo de ser e de pensar, e não simplesmente como meio ou expressão, nisso se distinguindo de António Sérgio, seu adversário íntimo, só pode ser existência na errância infinita que encontra e desencontra, sem remissão nem finalidade.

Tentemos perceber.

Aconteceu ao jovem futuro filósofo começar a suspeitar da impossibilidade da filosofia.

Mas a impossibilidade da filosofia não é o fracasso do conhecimento. O discurso ensaístico é a escrita do aclaramento do devir, que é múltiplo, que é muitos, como os caminhos da floresta, os diabos e as bruxas. Uma escrita infinita, recomeçada mas nunca no mesmo ponto, uma escrita sem começo, porque sempre já começada noutras vozes e noutros tempos e noutras escritas e uma escrita sem fim, porque condenada, à maneira de um Sísifo feliz no seu encontro com Penélope, a ser outras, sem saber quais.

Mas, para além (ou aquém?) Eduardo Lourenço é, ele próprio, uma existência-ensaio, a viva e rara experiência da concentração do tempo no presente, uma captação deslumbrada do mundo, o desejo de percorrer todos os fios e os fios de todos os tempos que tecem o presente.

A dificuldade do seu pensamento reside aí: é fácil reduzi-lo ao cliché, permanecer no limiar da sedução poética do discurso, torná-lo fórmula ou citação.

Eduardo Lourenço não é, porque ninguém é, a consciência (moral ou ética ou cívica ou política) do Portugal contemporâneo.

Basta que continue a ajudar-nos a pensar – o que, se bem reparam, depende de nós. É da nossa capacidade de ler e escutar, de inscrever o imediato em mediações cada vez mais longas, de dar contexto e horizonte ao que parece irrelevante e local – é desta capacidade que depende a eficácia dos grandes pensamentos do nosso tempo.

Prudente e irónico, Eduardo Lourenço tem manifestado a convicção de não ser lido: homenageado, mesmo aclamado, sim; mas lido, fora de um círculo de estudiosos, verdadeiramente lido, isto é: efetivamente presente nas decisões sobretudo coletivas, aquelas que podem influenciar o percurso de um País que se diz (cliché:) ajudar a conhecer melhor, isso não.

Agora, em São Pedro do Rio Seco, Eduardo Lourenço não regressa ao Lugar de Origem nem ao Lugar de Destino ou Finalidade. A sua existência-ensaio inscreve-o na tensão de um singularíssimo devir entre uma Origem inabitável e sempre habitada e uma Finalidade habitada e sempre diferida. Eduardo Lourenço revisita, pois, o enigma do Tempo: entre o movimento permanente e a sua suspensão no plano da u-topia.

Com ele, adentramos o mundo como devir.



* Texto publicado em CNotícias, nº 28, Coimbra, 11/VIII/2011, p. 23 e gentilmente cedido pelo Autor. As fotos dizem respeito à Homenagem a Eduardo Lourenço realizada no passado dia 6 de Agosto na sua aldeia de São Pedro do Rio Seco e foram retiradas de http://www.facebook.com/#!/pages/Homenagem-a-Eduardo-Louren%C3%A7o/187656614624875?sk=photos