segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Sobre Zacuto Lusitano – um manuscrito do período brasileiro

por Maria de Lourdes Soares

1959´- Édouard parle au Congrès Luso-Brésilien;
fin du séjour à Bahia avant le retour à Montpellier pour un an.
Ensuite ce serait Grenoble (foto enviada gentilmente por Annie de Faria)





Além de atuar como um dos Secretários da Comissão Organizadora do IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros (Salvador, 11 a 21 de Agosto de 1959, realizado sob o patrocínio da Universidade da Bahia e da UNESCO), Eduardo Lourenço de Faria (como então assinava) apresentou comunicações em três das oito Secções do evento: “O adolescentismo da moderna literatura portuguesa” (Secção A Literatura), que teve como Relator o poeta e crítico Jorge de Sena; “Fenomenologia e história de arte – O exemplo barroco” (Secção As Belas Artes), relatada por Mário Chicó, historiador de arte; e “O Brasil na obra médica de Zacuto Lusitano” (Secção As Ciências Médicas), cujo Relatório coube ao médico baiano Jayme de Sá Menezes.


Os dois primeiros textos foram publicados em Destroços (2004). Já o texto sobre o célebre médico português do século XVII, temática atípica no seu ensaísmo, permanece inédito, dele só se conhecendo a síntese publicada nos Resumos das Comunicações (Bahia, Agosto de 1959, p. 67), sem incluir “Lusitano” no título. Foi preciso aguardar mais de meio século para o manuscrito de “O Brasil na obra médica de Zacuto Lusitano” ser enfim “descoberto” durante os trabalhos do Projecto de Inventariação e Catalogação do Acervo de Eduardo Lourenço que decorre no âmbito das actividades do Centro Nacional de Cultura e com publicação prevista para o IV Volume das Obras Completas.

“É uma figura de aspecto severo e nobre, calvo, barbas à D. João de Castro e a grinalda de palavras que emoldura o retrato [gravura de Claude Audran] dá conta da sua qualidade de Lusitano, de que nunca abdicou e lhe ficou no nome, referindo-se ele sempre aos Portugueses como Lusitani nostri [...].”  Eduardo Lourenço




Após medicar durante trinta anos em Portugal, o judeu Zacuto Lusitano (1575-1642), «sem dúvida com sobrados motivos, de perseguição inquisitorial», radicou-se na bem informada Amsterdã por volta de 1624, próximo à época da criação da Companhia das Índias Ocidentais. Quando publicou sua Praxis Medica Admiranda (1ª edição 1634), Portugal e suas colônias ainda se encontravam sobre o domínio da Espanha (1580-1640) e as vilas de Olinda e Recife (Pernambuco) há apenas quatro anos haviam sido tomadas pelos holandeses (1630). Consultando um exemplar da 2ª edição da obra (não lhe foi possível consultar a primeira), de 1637, que lhe teria chegado às mãos por “acaso”, Eduardo Lourenço observou que os tratamentos com remédios exóticos referidos por Zacuto «dizem todos respeito à cidade de Pernambuco». Estes dados históricos são importantes, portanto, para esclarecer como as informações «então recentíssimas» sobre o uso medicinal de certas plantas pelos “brasilienses” chegaram tão rapidamente ao conhecimento do autor do referido Tratado de Medicina: «Zacuto pertencia a um meio e estava relacionado com gente para quem o interesse pelo que acontecia no Novo Mundo era natural e profundo».


Eduardo Lourenço ressaltou o pioneirismo da divulgação feita por Zacuto, considerando que as informações da sua obra, «possivelmente as primeiras a cursar a Europa em letra autenticada por uma autoridade em Medicina e em História da Medicina», constituem a pré-história da sistematização de Wilhelm Pies e George Marcgrave, que estiveram no Brasil durante o governo do conde Maurício de Nassau. A Pies (ou Piso) e Marcgrave, segundo um estudo do volume Medicina no Brasil consultado pelo ensaísta, coube «a glória da fase iniciadora dos conhecimentos médicos e dos estudos de história natural». Na mesma publicação, outro autor atribuirá esse papel a Gabriel Soares de Sousa e seu Tratado Descritivo do Brasil, de 1587, que permaneceu inédito até o século XIX, embora circulasse em cópias manuscritas na Europa. Zacuto «não esteve no Brasil» (tal como o cronista de Nassau, Caspar Barlaeus, muito presente no imaginário brasileiro a partir da citação de Euclides da Cunha em À Margem da História, 1909: «o doloroso apotegma – ultra equinotialem non peccavi – que Barlaeus engenhou para os desmandos da época colonial»), mas colheu-as «em primeira mão», autenticou-as e fez a sua apologia, «porventura a primeira deste gênero», com base em sua “experiência pessoal”. A sua atitude metodológica, embora não seja “científica” no sentido moderno do termo, merece este qualificativo, “no sentido baconiano ou renascentista”. Em suma, «é obra de ‘saber de experiência’, em sentido camoniano e não mero comentário estéril de fundo escolástico». Em seu Tratado apresenta as aplicações terapêuticas de produtos de origem americana, especialmente brasileira, com «caráter de novidade, sem referência a fonte escrita, como é seu costume». Há, contudo, «muitas referências às fontes clássicas, Hipócrates, Galeno, Averroes» e também a «todos os quase todos os grandes nomes da Medicina dos finais do século XVI e primeiro quartel do XVII [Vesálio, Falópio, Eustáquio, Santório, Fracastor[o], Jerónimo Fabrício de Aguapendente], prova da informação, do ecletismo, e da ausência de pré-juízo».


Lourenço apresenta as seis menções de Zacuto relativas ao Brasil: 1ª – o suco de Genibabo (jenipapo) para tratamento de alopecia; 2ª – casca cozida de Coqual para eliminar manchas da pele; 3ª – “unha” de uma gigantesca aranha venenosa, “semelhante à unha do pé do caranguejo”, para aliviar a dor de dentes; 5ª – bálsamo “De Capaivã (sic)” (copaíba) para facilitar o parto; 4ª e 6ª – além de referir aplicações terapêuticas de origem brasileira, têm a singularidade de relatar casos passados com naturais ou habitantes de Pernambuco: o de uma mulher com forte hemorragia, tratada com a erva Raiz da Serra torrada, e o de um mercador com terçã rebelde, que, de regresso a Pernambuco, curou-se graças ao bom clima e a uma mucilagem preparada com a polpa de um fruto da região, “antídotos” ímpares para combater diversos males.




A terceira e a sexta merecem mais comentários. O interesse da terceira, além de introduzir na descrição quase paradisíaca da natureza um ser monstruoso, mas de cujo veneno, prescrito na devida proporção, obtém-se o remédio, reside particularmente no fato de mencionar o relato de Pedro de Osmo na epístola enviada a Monardo, «e esta é a única fonte, embora citado indiretamente e colhida em obra de médico, do gênero crónica ou relato vivido, cuja ausência tanto surpreende num livro de um homem como Zacuto, português e que jamais menciona qualquer dos nossos grandes cronistas de quinhentos». Na sexta – «de todas a mais interessante e saborosa» segundo Lourenço – Zacuto faz “o louvor dos ares pátrios” e oferece uma pitoresca evocação, «embora genérica, do ‘habitat’ de um brasileiro rico do século XVII», que «chegando às costas do Brasil, recolheu-se a uma casa de campo e à floresta, recriando-se com o perfume maravilhoso das várias essências, ervas, plantas e refeito pelo dulcíssimo e gratíssimo sabor de múltiplos frutos que ali se dão sem qualquer cultura e revivescendo pelo temperado do ar e pela salubridade ficou melhor e menos atacado pelas úlceras, pela febre e pelo comichão. Finalmente, tendo usado de um certo fruto obteve saúde próspera». Este fruto tropical «que em língua brasileira é chamado Maracujao Hasu (sic)» – exótico ao olhar estrangeiro – é o maracujá-açu, nome de origem indígena: maracujá significa “comida na cuia” (devido à sua forma de vasilha) e açu, “grande”, qualifica a espécie. É impossível não associar a descrição feita por Zacuto, exaltando os “bons ares” da terra e a natureza exuberante, à imagem primeira do Brasil na Carta de Pero Vaz de Caminha e à presente em diversas fontes do século XVI – nas cartas dos jesuítas Nóbrega e Anchieta e nas obras de outros cronistas, como Gândavo, Cardim e Gabriel de Sousa.