segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Dois Eduardos no Rio

Ler Eduardo Lourenço já se referiu em ocasião anterior a Eduardo Prado Coelho: para além de tudo o mais, grande leitor e amigo. Ora, a Professora Gilda Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e a quem os amigos do pensamento de Eduardo Lourenço devem, entre tantas outras coisas, o magnífico nº 4 da revista Metamorfoses (UFRJ-Caminho, 2003), com o extenso dossier Os trabalhos e os dias, enviou-nos um texto, lido em 1990 nessa mesma Universidade, em que Eduardo Prado Coelho apresenta Eduardo Lourenço. Na foto, retirada de http://www.paginaliterariadoporto.com/, aparecem os dois ensaístas com o poeta Albano Martins, sentado à esquerda, precisamente na Livraria Camões no Rio, nesse mesmo ano. A esta gentileza, que Ler Eduardo Lourenço muito agradece, a Professora Gilda Santos acrescentou uma outra não menor, redigindo uma breve e excelente nota de enquadramento que em seguida também se publica.



Certamente não foram poucas as oportunidades que aproximaram Eduardo Lourenço e Eduardo Prado Coelho em encontros científicos, pelos vários cantos do globo. Contudo, ainda que incorrendo no risco de não ser original, pareceu-me de interesse ressuscitar das páginas de esquecidos Anais as palavras belas e exatas com que o mais jovem Eduardo apresentou o seu xará mais velho num encontro no Rio de Janeiro, nos idos de 1990. Tratava-se do “XIII Encontro de Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa”, promovido pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre 30 de julho e 3 de agosto, cabendo a conferência inaugural a Eduardo Lourenço, que nos apresentou seu texto “Dois fins de século”, hoje no livro O Canto do Signo - existência e literatura.
No revisitar dessas palavras, a homenagem justa aos dois Eduardos, dois amigos em pleno [Gilda Santos].

EDUARDO LOURENÇO
Não se trata de apresentar Eduardo Lourenço. Inútil, redundante, impossível.
Quando muito, situá-lo em torno de algumas palavras.
A primeira palavra é heterodoxia. No momento em que, em Portugal, a situação interna de ditadura fascista e a guerra fria apontavam para a crispação de linguagens dogmáticas, Eduardo Lourenço soube, sem ambigüidades nem compromissos, desenvolver um discurso de heterodoxia: releitura de Hegel e Marx, acentuação da importância de Nietzche ou Kierkegaard, valorização do pensamento existencial, incluindo certos aspectos do existencialismo cristão, atenção a Sartre ou Camus.
A segunda palavra é identidade. Ou, se preferirem, caracterização da identidade cultural portuguesa. Aí um livro é fundamental: O labirinto da saudade. Mas o propósito, enunciado no subtítulo, que indica que se trata de “uma psicanálise mítica”, não era o do comprazimento numa problemática obsessiva da mítica identidade nacional, mas libertação disso, como se isso fôra, na sua obsessão, uma figura de doença. Refletindo sobre o destino português, Eduardo Lourenço não podia deixar de se confrontar com os problemas que resultam da nossa integração num espaço europeu – história longa e enredada, que é ao mesmo tempo o rosário da nossa relação com a Modernidade. Daí um livro recente, premiado com o Prêmio Charles Veillon, atribuído ao melhor ensaio europeu em 1989, que se intitula Nós e a Europa ou as duas razões.
As incidências literárias desta problemática levam-nos inevitavelmente para dois dos autores centrais no ensaísmo de Eduardo Lourenço: Camões e Fernando Pessoa. Em relação a Pessoa, que revisitou numerosas vezes, devemos-lhe uma leitura inovadora e desmitificante. Mas de Pessoa à Modernidade européia e portuguesa, o trajeto era óbvio. Pessoa como ontologia negativa da literatura, à luz do niilismo contemporâneo, da negatividade da linguagem, da descontinuidade da consciência. O que traça uma reflexão constante sobre os limites da razão – contra as ilusões, no modelo Sérgio, de um racionalismo que elimina o vazio, o nada e o trágico. Mas o niilismo que diagnosticou nos seus sucessivos estratos não apagou a permanência de uma atitude de Esquerda que sempre se configurou, em numerosos textos políticos, como esperança socialista.
Simultaneamente, Eduardo Lourenço é o grande acompanhador da literatura portuguesa contemporânea – no sentido em que cada autor encontrou nele um foco de inteligibilidade generosa e amiga.
Para concluir, salientaria apenas três coisas:
– a capacidade de colocar qualquer questão num espaço em que nos sentimos implicados no mais fundo das nossas inquietações e interrogações;
– uma imensa generosidade do pensamento, um gosto de pensar, pensar em voz alta e pensar com os outros, a partir da provocação dos outros;
– na ausência de receitas, que seria absurdo esperar, Eduardo Lourenço dá-nos a certeza de que, quando alguém é capaz de pensar com esta evidência e com esta energia, alguma coisa se desloca em nós e nos faz aproximar daquilo que é mais perfeito, mais contagiante e mais justo.

Eduardo Prado Coelho
[Texto de apresentação de Eduardo Lourenço lido no XIII Encontro de Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa, Rio de Janeiro, Univ. Federal do Rio de Janeiro, 30 de Julho a 3 de Agosto de 1990].