sexta-feira, 12 de junho de 2015

Frederico Lourenço*

Frederico Lourenço (imagem da sua página pessoal no facebook)
Uma situação recorrente ainda hoje é as pessoas pensarem que sou filho de Eduardo Lourenço. Não sou. Também não é meu tio. O “Lourenço” do Eduardo Lourenço é um nome da Guarda. O “Lourenço” do meu pai é um nome de Sintra. Trata-se de uma família (a nossa) como havia muitas no século XIX: gerações e gerações de criados da família Bragança. D. Fernando II menciona no seu testamento Tomás Lourenço, o meu trisavô, que era seu criado fiel e que tratou dele ate ao fim (D. Fernando morreu da mesma doença de que morreu o meu pai: cancro do maxilar). Um dos filhos de Tomás, o meu bisavô Artur, veio a ser um dos empregados favoritos do rei D. Carlos, que lhe deu o cargo de almoxarife do Palácio de Pena. Foi na Pena que nasceu o meu avô Manuel António Lourenço, a 26 de Novembro de 1906. Por isso foi sempre conhecido em Sintra, ate à sua morte em 1975, como “o Manuel da Pena”. O presente de baptizado que o rei D. Carlos deu ao filho do seu criado (uns bonitos botões de punho) ainda está na posse dos descendentes de Manuel António Lourenço. Usei esses botões de punho no dia do meu doutoramento. O meu pai, filho único do Manuel da Pena, tinha o mesmo nome do pai dele: Manuel António. Como o pai da minha mãe era também Manuel António, teria sido previsível que fosse esse o meu nome de baptismo. No entanto, a minha mãe – que detestava o nome Manuel assim como o seu próprio nome Manuela – não estava disposta a ter pai, marido, sogro e filho com esse nome odiado. Portanto fui baptizado Frederico Maria Cristiano. O meu pai queria à força Frederico Cristiano, com o argumento que isso me dava o ar de ser filho de Bach. A minha mãe queria o nome da Virgem Maria. Acabei por ser baptizado com os três nomes. Voltando ao Dr. Eduardo Lourenço, pessoa que tanto prezo admiro. A confusão dos “dois Lourenços” já vem desde os anos 60, pois a minha mãe contava-me a situação repetida de lhe dizerem quanto gostavam dos escritos geniais “do seu cunhado; e o seu marido também escreve bem.” Este “cunhado” genial era o Eduardo; o marido que também não escrevia mal era o meu pai. Na verdade, é impossível comparar os escritos de um de outro: o Manuel, filósofo, escreveu a sua melhor obra no campo da poesia, âmbito do qual o Eduardo, também filósofo, se manteve arredado. No campo do ensaio, em que ambos se distinguiram (o Eduardo certamente mais do que o Manuel), os dois “irmãos” são o ovo e o espeto. Sempre ouvi falar do Eduardo Lourenço toda a minha vida (e li-o bastante em certa fase), mas já tinha 40 anos quando o conheci pela primeira vez. Nessa ocasião, brinquei um pouco com ele a propósito da situação de toda a gente me achar seu filho. Ele riu-se muito e teve a gentileza de me dizer “considero o seu pai um génio”. Na altura, o meu pai ainda era vivo e relatei-lhe esta lisonja tão simpática, a qual ele reagiu com um longo silêncio. Depois comentou: “ele diz isso porque é padre”. Frase que ocasionou, obviamente, indignação da minha parte e uma acesa esgrima dialéctica, em que eu tentava convencê-lo de que Eduardo Lourenço não era, nem nunca fora, padre. Já não sei quem ganhou este duelo (espero ter sido eu), de resto bem típico das nossas conversas a dois. Quantas vezes eu me perguntava se o meu pai se estava a fazer de parvo quando dizia coisas como “vi ontem uma japonesa a entrevistar um neerlandês", referindo-se a um programa televisivo na véspera em que a actriz Inês de Medeiros dialogava com o economista Vitor Constâncio. Claro que eu reagia a estas afirmações outrageous com a sanha justiceira de quem queria repor a verdade dos factos, o que – desconfio hoje – devia divertir imenso o meu pai, que dizia certamente aquelas coisas para me provocar. Eu mordia sempre o isco e, assim, o meu pai, ao fazer-se de parvo, conseguia fazer sempre de mim parvo a dobrar. Nunca aprendi. Para rematar. Há dias, cá em Coimbra, alguém me perguntou “você é filho do capitão de Abril, não é, do Vasco Lourenço?” A resposta saiu-me imediata e homericamente apetrechada de asas: “Não, sou filho do Eduardo Lourenço”.
* Frederico Lourenço é Professor Associado na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Tradutor e romancista premiado, é também autor de livros de poesia e de ensaio. O texto que, com a devida vénia, hoje aqui se reproduz faz parte da sua última obra O Lugar Supraceleste-Crónicas (pp.20-22) que a editora Cotovia acaba de fazer chegar às livrarias.

domingo, 10 de maio de 2015

"Daria o Prémio Nobel a António Lobo Antunes!"


Amigo muito atento e não menos generoso de Ler Eduardo Lourenço chamou a atenção para o suplemento Babelia da edição de ontem do El País, sem dúvida o mais importante diário espanhol. Aí, na página dezanove, Javier Martin assina uma entrevista de página inteira com aquele a quem chama o «grande humanista português». Para além de muitos outros aspectos relevantes, que justificam a leitura integral da entrevista a el periódico global, Eduardo Lourenço responde a nove perguntas disparadas à queima-roupa numa secção intitulada cuestión de gustos e que, pelo seu manifesto  interesse, a seguir se apresenta em apressada tradução:

1) Em que livro gostaria de viver?
R: Guerra e Paz, um livro com história e uma história com livro.

2) Que intelectual, de qualquer época, convidaria para jantar consigo?
R: Kierkegaard.

3) Qual foi o melhor momento da sua vida?
R: O dia em que conheci a minha mulher.

4) Que profissão seria incapaz de aceitar?
R: Mineiro, por causa da minha agorafobia.

5) Que fez no último fim de semana?
R: Fui ao cinema ver Alemanha Ano Zero de Rosselini.

6) Qual foi o último livro que leu?
R: Alguém, romance inédito da embaixadora de Portugal em São Tomé.

7) Que filme não conseguiu ver até ao fim?
R: Creio que nenhum. Sou um viciado em imagens.

8) O que está hoje socialmente sobrevalorizado?
R: Os comentadores de futebol. Gosto de futebol, mas não suporto tudo aquilo que se diz depois de um jogo que terminou empatado a zero.

9) A quem daria o Prémio Nobel?
R: António Lobo Antunes. 

sábado, 2 de maio de 2015

Maria Barroso: Socialismo e Ética*

Maria de Jesus Barroso
Para a nossa geração, Maria Barroso é a lembrança de uma frágil Antígona ibérica enclaustrada entre os muros brancos da “Casa de Bernarda Alba”. A vida deu-lhe ensejo de transpor do palco para a cena, sem artifícios da opressão humana, o seu puro grito de heroína habitada pela revolta e pela paixão da liberdade. 
É consolador reencontrá-lo intacto na veemência salutar da sua recente carta. Importa muito que o seu apelo em favor de um resistente angolano ameaçado de morte ou de prisão seja ouvido. É de esperar que encontre um eco justo. Mas para além dele, a carta de Maria Barroso coloca numa luz implacável uma questão poucas vezes abordada com lucidez e coragem como o merece: o da ética socialista e revolucionária. 
No mundo gelado do combate político sob a sigla revolucionária, uma tal questão parece relevar de considerações sem interesse, da pura ordem afectiva, sem verdadeiro alcance político “objectivo”. Dado como assente que a finalidade do combate socialista (em sentido genérico) é excelente, e tem a seu favor o celebrado “sentido da história”, parece digna de hamlets burgueses toda a forma de perplexidade ética, de interrogação em matéria de comportamento político. 
Não é de hoje a questão dos meios e dos fins, nem foi a nossa época de tentações totalitárias que inventou os conceitos de “razão de Estado ou de Realpolitik”. O mundo do poder qualquer que seja a sua forma ou natureza é um mundo trágico por excelência, uma prova e uma provação permanentes para todos os seus actores. Napoleão pôde escrever que a tragédia moderna era a política. Mas foi-o sempre. 
A Antígona de Sófocles é tão política como a Fedra de Racine ou Os Sequestrados de Altona. A única diferença é que no nosso tempo o combate político de forma revolucionária supôs ser ao mesmo tempo o combate por uma transparência das relações humanas capaz de abolir, enfim, a fatalidade trágica, a contradição insolúvel inerente ao mundo da política “burguesa”. 
Como era de esperar, esta mesma pretensão, justa como finalidade a atingir, tornou-se ela própria uma fonte de tragédias suplementares, tragédias do “bem” que não são menos implacáveis que as do “mal”. Entre a verdade global representada pelo partido com vocação messiânica, ou o Estado-Deus como verdade política encarnada, o homem “militante” é solicitado sem cessar entre a obediência regenerante do seu pendor individualista e a paixão crítica suscitada pelo contraste fatal entre a prática política efectiva e a miragem utópica da promessa. Entre o maniqueísmo que toda a acção supõe, como diz Malraux, e a liberdade que cada homem é, se trava o conflito que só a acção mesma decide. Mas nela se joga de cada vez o sentido global da vida que, na medida em que resulta de uma escolha para ser realmente humano, é fatalmente ético e supõe, por isso, uma referência, explícita ou implícita, a uma ética da acção, e para além dela à ideia e realidade de uma Ética. 
O conceito tem hoje um relento suspeito. Evoca em excesso a velha moral de cabeça de Medusa, repressiva e hipócrita, máscara por demais transparente dos valores invocados por uma sociedade injusta para perpetuar a sua injustiça. Contudo, não é possível acção alguma sem referência ética. E muito menos um combate socialista que não seja simultânea e imperativamente um combate ético, uma luta por uma nova imagem dos homens, por uma sociedade capaz de transcender positivamente os valores desviados mas jamais esquecidos que têm guiado a aventura da nossa humanização precária e perecível. 
O imperativo político em termos revolucionários supõe um imperativo ético, e só tem sentido através dele. Isto significa que ninguém o pode impor “de fora”, como aliás Kant e o cristianismo o ensinam, mas que é a descoberta, a criação, a invenção do agente humano enquanto livre agente da sua intérmina libertação. 
A história vivida da prática “socialista” é a história da dificuldade e da contradição espectacular entre a “bondade” dos fins e dos ideais propostos e a sua negação prática justificada como entorse passageiro, acidental, de um processo que não precisa de outra confirmação que o triunfo meramente político. 
Quem acompanhou, de dentro, os conflitos ideológicos, políticos, culturais da sociedade portuguesa desde os anos Quarenta sabe todavia que também entre nós, sob a forma cinzenta e críptica que a época requeria, existiram os émulos dos personagens que a títulos diversos ilustraram o tema da consciência revolucionária e da “consciência ética”. 
A Superioridade Moral dos Comunistas é um belo e provocante título e um texto que os Portugueses devem meditar com a atenção que merece, até porque é o mais vivido e sentido dos textos que conhecemos de Álvaro Cunhal. Seria pouco sério discuti-lo ou refutá-lo em duas linhas. É um texto que parece transformar num mistério essa questão capital das relações entre Socialismo e Ética. 
Enquanto convicção e ficção, fica-se impressionado com a força ética de um homem e de um militante que fala em nome de outros homens que foram (e são) capazes de sacrifícios fora do comum e põem na conta do combate socialista, tal como o entendem, um impressionante rol de vítimas. Mas há o resto, e o resto é imenso e inapagável. Há no mesmo campo, e muitas vezes nos mesmos homens, a sombra dura e fria de uma antiética que basta e sobra para destruir na raiz mesmo o que há de “verdade” nessa afirmação hiperbólica da “superioridade moral dos comunistas”. É essa sombra que a carta de Maria Barroso evoca em termos e com nomes próprios. Sombra nossa, questão posta a todos quantos não renunciaram a ver no socialismo a forma mais alta da conciliação entre a justiça social e a vocação ética dos indivíduos. Falhando-se como ética, o socialismo falha-se como resposta histórica. Quem poderá estar interessado numa falência que é a de uma antiga e tenaz esperança? 

* Maria de Jesus Barroso completa hoje noventa anos. Admirador da actriz desde os tempos de Coimbra, Eduardo Lourenço evoca a efeméride num artigo no Público (“Mais do que uma artista”, Público, 2/V/2015, p. 45). Assinalando a data, Ler Eduardo Lourenço recupera um outro texto do ensaísta publicado há quase quatro décadas e no qual, a pretexto também de Maria Barroso, desenvolve um tema que não perdeu actualidade: “Socialismo e Ética”, Opção, nº 3, 13/V/1976, p. 23. O texto foi reimpresso no livro O Complexo de Marx , Lisboa, Publicações D.Quixote, 1979, Col. “Participar, nº 13, pp.14-16.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Pela mão de Agustina, redescobrir Brennand*

Um dia, nós estávamos no Recife e chovia como só aconteceu na era diluviana e em que os dinossauros se afogaram todos. Não foi na época glaciar que eles pereceram (morreram, acabaram, quero dizer), mas num como o de Recife, em Julho ou Agosto. Estavam lá o Eduardo Lourenço e o António José Saraiva, e eu, e mais pessoas. As casas tinham o célebre grelado de humidade de que fala Pessoa num dos seus poemas e que eu nunca soube o que era antes de ir a Recife. 
Mas do que eu pretendo falar é do caminho de Brenan. Brenan, Francisco Brenan, é um escultor e ceramista de tipo atlético, figura interessante e torrencial na obra que se diz urbana, pela aplicação que tem na cidade e na decoração que daí resulta. A sua Batalha dos Guaranapes estende-se por uma boa leira citadina e mostra a luta bastante aplicada que travaram os holandeses com os outros. Os outros não são necessariamente os inimigos que, no painel, aparecem, mas que eu não vou identificar. A hora não é histórica e não se trata senão do caminho de Brenan; nada de atalhos convulsivos nem de política didáctica.  


O caminho de Brenan, que nós percorremos uma tarde, depois de um almoço oficial e bastante instrutivo porque se analisou o tempo em Recife, um estranho tempo opressivo, de calor geométrico, quadrado, sem alterações, o que lança as pessoas num estado de imaginação ordenada e propensa a grandes decisões. Por exemplo, as épocas chuvosas do Egipto influíram decerto no plano migratório dos hebreus. Mas isto é o caminho de Brenan, e não a passagem do Mar Vermelho ou a travessia do deserto. 
Era uma espécie de picada barrenta onde patinavam, perigosamente os pneus dos carros. Das folhas das bananeiras, como de calas pintadas de verde, caía uma água leitosa; alguns bois-zebus triscavam o alto capim e pareciam tão solitários como se estivessem a desempenhar um papel no segundo dia da criação. Já se avista o atelier de Brenan, com a sua ampla fachada de catedral da cerâmica, e um guarda abre o portão com aquela fixa urbanidade que não é mais do que o cumprimento duma ordem. Está armado, e eu penso se, debaixo da chuva, a pistola não vai enferrujar. Eduardo Lourenço, com a pasta de catedrático molhada até aos ossos, lança um olhar maravilhado. A nós, os papelistas, maravilha-nos a natureza cândida das coisas perigosas: as revoluções, as serpentes, os guarda-portões.  



De facto, trata-se de uma catedral. Brenan está ausente, e temos tempo para percorrer a grande nave de exposição cerâmica que foi em tempo uma fábrica de tijolos. Agora Brenan rubrica, complacente, quilómetros de tijoleira que vai pavimentar os átrios e os jardins norte-americanos. A sua assinatura tem a cotação do dólar, e ele entroniza uma indústria de barro como se simbolizasse a obra de Deus convertida em negócio. Ali o barro é e será. Grandes cestos de serpentes parecem bulir com um movimento imperceptível e nauseante. Quem vai decorar o pátio com aqueles belos horrores, crepitantes do fogo que lhes pintou as escamas e fez brilhar os olhos, e fez dardejar a língua preta, eu não sei. A impressão é revoltante e atraente. Estamos em Cartago, e o culto de Tanit vai celebrar-se, com Salambô ou sem ela; de resto, debaixo do repicar da chuva, distinguimos uma espécie de mausoléu, lá fora, em que se combina a assírica cor de brique e o etrusco espaço dos monumentos. Duas jovens secretárias vêm até nós, gingando nos jeans, derramados os cabelos, ousadas e púdicas ao mesmo tempo. A nave é cheia de surpresas, de quartos dardejantes onde rutila um lume invisível; o tema de Joana d’Arc desenvolve-se exaustivamente, e ela tem um rosto órfico e passivo. Porque o prefere Brenan, não sabemos, a não ser que lhe atribua qualquer significado ardente que a mística esconde. O que se pressente é um êxtase carnal que os simbolistas teriam admirado muito. As cobras fálicas, os seus anéis prontos a torcer-se, as frutas apertadas em pratos verdes, as mulheres núbias, venezianas, índias e mongóis, com um pesado traseiro que parece pão de Avintes, na cor e na forma, no vidrado da côdea, no estalar dos veios, na morena e térrea massa, abrem alas para nós passarmos.


E nós passamos, livrescos e oratórios que somos, com os nossos guarda-chuvas e muitas horas de voo, um pouco pálidos, porque nos fez mal a caipirinha e nos faz mal aquela multidão cerâmica encerrada na luz profunda dum ventre de barro. Eduardo Lourenço esquece a sua pasta que regurgita ensaios e cadernos. Volta para a recuperar; rimo-nos, distraídos naquela floresta de troncos e seios azulados, que parecem esperar a princesa de Cartago, sacerdotisa, com pérolas que destilam perfume, e tão branca como Tanit nos céus, à noite.
É quando Brenan chega. Se trouxesse uma couraça de couro manchada de sangue não nos impressionava mais. Mas não se trata de um guerreiro, mas de um artista-farmer, um pouco amuado com o sucesso e com a velhice que é o preço austero do sucesso. Arvora uma genealogia europeia, com algo de Irlanda druida nas veias, o que o torna imponderável para a nossa psicologia; mas acode-lhe o Portugal melancólico, balançando entre o instinto de prazer e o instinto de morte, como numa ponte que o diabo fez uma noite. Lá fora a chuva canta, banhando copiosamente as vénus calipígias do pátio. A cor frondosa da cerâmica exala um calor amigável mas também um pouco ameaçador. Conversamos, mas aqui a conversa é uma delinquência. Ela é atravessada por inúmeros afluentes de pensamentos raros, pequenos sulcos, pegadas primitivas. Literatos que somos, um vago pressentimento de atraiçoarmos a nossa profissão ascética instala-se como um verme numa maçã, Eu digo: – Gostava de posar para uma Joana d’Arc. – Porém, sei que estou a adular Brenan, a sua sumptuosa vantagem sobre o pensador. Eduardo Lourenço contempla-a como a um monumento, e quase faz à volta de Brenan um passeio circular; como se ele fosse um guarda do palácio de Buckingham ou o mausoléu Les Antiques, na Provença. 

 

A tarde desdobra-se em ondas curtas de humidade que vem do mato e faz espelhar as folhas e os pavimentos da tijoleira ruiva. Temos que voltar para Recife. Os mesmos zebus pastam na berma, a mesma ondulação do nevoeiro sobre o horizonte florestal; uns passos mais e é a selva, encharcada, ávida, poderosa, com a zoada das aves que a cidade expulsou, com as orquídeas rosa em degraus, como cantores num coro de igreja. O caminho de Brenan fecha-se sobre nós; e só temos diante a encruzilhada das ruas novas que nos levam à avenida marítima onde está o nosso hotel. Parece que perdemos alguma coisa e, um pouco à toa, verificamos a pequena bagagem de turistas e o símbolo de professores que é a pasta repleta de papéis e livros. Se António José Saraiva tivesse ido connosco, decerto voltava atrás para procurar os óculos ou a boina naquela nave profana, guardada por serpentes. Como será entrar à noite nesse espaço fabril onde se guardam as antigas máquinas de fazer tijolo? Estranho, como elas têm um ar lúcido e inocente, como todas as máquinas que já não servem! À noite deve ser impressionante o grande hangar com as traves cruzadas como flechas de pau-ferro. Os cestos de cobras animam-se, e elas rastejam impudentemente pelo chão vidrado. As Joanas d’Arc, de cabeças como romãs que vão abrir-se mostrando as dentaduras vermelhas e cristalinas, esperam a hora de despertar para as suas visões. A cabina onde se simula um forno pronto a destilar grandes corpos de aymorés glabros e azuis exala um calor absorto, tentador, que circula nas veias, que atinge o ventre, que se precipita como lava na piscina seca e onde falta um pé de mulher como o duma faraona de perfil barrento e olho pintado e longo, o olho de Hórus com a sobrancelha entrançada e que cobre os espaços, solene, implacável, protector, divino.
Mas nós não voltamos. Comemos abacaxi pernambucano, com um vago sentimento de comer o fruto proibido. O sumo perfumado sabe a flores e, depois de o saborear, desprazamos os néctares enlatados, o vinho Chianti e a água de coco. Não pensamos mais no caminho de Brenan. Mas não o abandonamos completamente. 

* Foi anunciado na semana passada que o Prémio Eduardo Lourenço 2015 foi atribuído à escritora Agustina Bessa-Luís. Assinalando o facto, Ler Eduardo Lourenço recupera, com a devida vénia, uma deliciosa crónica que a escritora dedicou a Eduardo Lourenço no famoso número especial da revista Prelo consagrado ao ensaísta (Prelo-Revista da Imprensa Nacional/Casa da Moeda, nº especial, Lisboa, Maio de 1984, pp. 97-99). O texto, que seria posteriormente publicado no volume Cartografia Imaginária de Eduardo Lourenço, recebeu o título "Caminho de Brenan" e evoca uma visita que Agustina e Eduardo Lourenço fizeram à oficina do ceramista Francisco Brennand (é esta a rigorosa grafia do nome do artista) no Recife (Brasil). Sobre Brennand veja-se o site oficial de onde se retiram as três primeiras imagens que ilustram a crónica de Agustina: http://www.brennand.com.br/

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Orpheu, 100 anos



2015 é tempo de centenário da revista Orpheu. Multiplicam-se as iniciativas para assinalar a importante efeméride. Por exemplo, na próxima sexta-feira, o diário Público põe à disposição dos seus leitores uma edição fac-similada dos dois únicos e fulgurantes números de Orpheu. O Congresso Internacional Luso-Brasileiro 100 Orpheu, cuja primeira parte que decorreu, em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian e no Centro Cultural de Belém no passado mês de Março e que terá continuidade em São Paulo entre 25 e 28 de Maio constitui, sem dúvida, um dos momentos mais significativos das comemorações.
Eduardo Lourenço tem participado activamente em muitas dessas iniciativas. No passado dia 28, efectuou mesmo a conferência de encerramento da componente lisboeta deste Congresso Internacional. A sessão, presidida por Annabela Rita, foi felizmente filmada por Luís Tavares (a quem se deve já um significativo arquivo audiovisual de importantes eventos) e Ler Eduardo Lourenço não poderia deixar de partilhar o video deste movimento verdadeiramente singular.


quarta-feira, 15 de abril de 2015

Manoel de Oliveira: quase contemporâneo de uma arte sem passado

 O Jornal de Letras, Artes e Ideias de hoje dedica a Manoel de Oliveira um dossier que inclui vários ensaios e testemunhos dedicados ao realizador de Francisca, merecendo especial destaque o curto, mas interessantíssimo, Moderno por não moderno, texto de Eduardo Lourenço, de onde Ler Eduardo Lourenço repescou a feliz expressão que encima a prosa de hoje. Como se sabe, não é esta a primeira ocasião em que o ensaísta escreve sobre o cineasta. Relembre-se, a título de exemplo, uma muito sugestiva reflexão sobre Non ou a vã glória de mandar: “Para Cá do Espelho Mágico ou a grã glória de des-sonhar” (Suplemento Fim de Semana de Público, 12/X/1990, pp. 8-9). Curiosamente, o mesmo JL, na década de Oitenta do século passado, também publicou um texto dedicado ao autor de O Labirinto da Saudade, escrito por ... Manoel de Oliveira. Relendo esse artigo de Oliveira, até pelo seu título “[Eduardo Lourenço]Um pós-moderno” (Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 231, Lisboa, 6/XII/1986, p. 13) a muitos apetecerá imediatamente relacioná-lo com o inédito de Eduardo Lourenço que o quinzenário dirigido por José Carlos de Vasconcelos hoje divulga na sua página sete e que, por si só, justifica a aquisição deste número.
Um outro aspecto menos conhecido da relação intelectual destes dois amigos merece, porventura, ser destacado. É que Eduardo Lourenço participou numa das obras da vasta filmografia de Oliveira. Não se pode dizer, em rigor, que a paixão do ensaísta pelo cinema o tenha convertido em actor. Mas a verdade é que, no documentário luso-italiano Lisboa Cultural que o realizador rodou nos anos de 1982 e 1983, Eduardo Lourenço tem uma breve aparição. Lisboa Cultural, que se estrearia em 28 de Setembro de 1984, contou com a presença de um naipe significativo de actores portugueses, entre os quais se destacam Eunice Muñoz, Diogo Dória, Carlos Paulo, Maria do Céu Guerra, Teresa Madruga, Lima Barreto, Luís Miguel Cintra, Manuela Freitas ou até Maria Barroso. Para além disso, intervêm no filme nomes como Artur Nobre de Gusmão, Oliveira Marques, António José Saraiva, Adriano de Gusmão, Luís Albuquerque, David Mourão-Ferreira, Maria de Lurdes Belchior, Jacinto do Prado Coelho, João de Freitas Branco, Flávio Gonçalves, Osório Mateus, Joel Serrão, Azeredo Perdigão, Eduardo Prado Coelho ou João Gaspar Simões.
É no quadro destas intervenções que participam também em Lisboa Cultural Eduardo Lourenço ou José-Augusto França. Infelizmente o curto trecho do filme que Ler Eduardo Lourenço conseguiu encontrar, e que a seguir se reproduznão inclui a prestação do autor de O Espelho Imaginário que, salvo equívoco de memória, consta de uma declaração filmada em frente à Torre de Belém, mas nele pode ver-se o ensaísta e historiador de arte José-Augusto França. Será evidente exagero pensar-se que, pelo que foi dito, Eduardo Lourenço é um dos actores do mais importante cineasta português ou até que Lisboa Cultural é um dos momentos decisivos da arte maior de Oliveira. Ainda assim, fica aqui registada, na semana seguinte à sua morte, a homenagem ao autor de Aniki-Bobó, filme que, nas palavras de Eduardo Lourenço, é «um milagre sem segundo na nossa história (já então “estória”) cinematográfica» (Jornal de Letras, Artes e Ideias, 15/IV/2015, p. 7).


sexta-feira, 10 de abril de 2015

Herberto Helder ou o ensaio que falta

Sobre poucos poetas portugueses não tem escrito Eduardo Lourenço e basta percorrer a tábua de matérias do III volume das Obras Completas, que está em fase muito adiantada da sua preparação e que é organizado em torno do livro Tempo e Poesia, mas que incluirá muitos ensaios dispersos e inéditos dedicados a numerosos poetas pós-Orpheu (embora não apenas a estes), para se ficar com uma pequena ideia sobre esta evidência. Não deixa, por isso, de ser estranho que poucas, ou mesmo pouquíssimas, sejam as páginas que o ensaísta dedicou ao recentemente falecido Herberto Helder, nome maior de toda a poesia contemporânea. Sobre este raramente interrompido silêncio, se é que faz sentido pôr as coisas nestes termos, merece sem dúvida haver reflexão, até porque, no pouco que Eduardo Lourenço escreveu acerca do autor de Os Passos em Volta, encontramos trechos tão cativantes como parte do parágrafo (que a seguir se reproduz), extraído do ensaio, escrito nos anos Oitenta, “Entre o Ser e o Silêncio. Cem anos de poesia portuguesa”. O assunto tratado é o enquadramento da obra herbertiana no contexto da poesia da década de Cinquenta e, em especial, das suas relações com o surrealismo, bem como a influência que Herberto, juntamente com António Ramos Rosa, exerceu sobre as gerações poéticas seguintes. Claro que nem o tema (que não é excessivamente original), nem o espaço desta breve síntese acerca daquele que muitos chamam o século de ouro da nossa poesia, autorizam que se considere este curtíssimo excerto um ensaio de Eduardo Lourenço sobre Herberto Helder. Mas, como quase sempre que o ensaísta escreve sobre poesia, há aqui um fulgor e uma limpidez que permitem que não se perca a esperança de, um dia destes, se possa, enfim, ler esse ensaio que ainda falta. Herberto Helder merecia-o, sem dúvida. E Eduardo Lourenço talvez também o mereça. 

foto de Ler Eduardo Lourenço
«Quase toda a grande poesia portuguesa a partir dos anos 50 repercute a libertação que o surrea­lismo significou. A já então consagrada, como a de Eugénio de Andrade, da própria Sophia (os casos de Jorge de Sena e, sobretudo, de Cinatti rele­vam de outra leitura, como o de José Blanc de Por­tugal), dialogam com a nova prática poética. E de entre os grandes poetas dos últimos trinta anos, de Ramos Rosa e Luiza Neto Jorge a Herberto Hel­der que lhe dará uma expressão visionária e lite­ralmente fantástica, poucos são os que se situam nas suas margens ou conscientemente num outro espaço, como Jorge de Sena, Ruy Belo ou Antó­nio Osório ou Alberto de Lacerda. Pode pensar-se que o surrealismo, sobretudo na forma que assume em Cesariny e, sobretudo, Alexandre O’Neill, representa, sob forma lúdica, uma nova reificação do “eu”, um novo imperialismo da consciência poética individualizada e mesmo individual. Há algu­ma verdade nisso e que o Álvaro de Campos, “clássico à sua maneira” e sujeito preciso da sua cria­ção, seja referência explícita ou implícita dela, con­firmaria o que seria uma “regressão” modernista. Na verdade o “eu”, sem encenação da sua ficcio­nalidade, só na aparência ganha esse estatuto soli­dificado. O poema surrealista é intrinsecamente des-centrado, ontologicamente “anónimo”, não se contempla como lugar vazio que dramatiza a sua ausência, como em Pessoa, mas celebra-se quase euforicamente como in-significante, in-transcen­dente, não-sério. Melhor do que ninguém, Alexan­dre O’Neill deu a essa “insignificância” do eu, sarcástica e ludicamente apreendida, um estatuto tão popular. Caberia a Herberto Helder conceber a realidade como uma monstruosa e magnificente Metáfora e o conjunto da realidade e das suas manifestações como um arquipélago de metáforas ao mesmo tempo organicamente oníricas e oniri­camente orgânicas. Não admira que a sua fabu­losa alquimia poética seja um dos pólos em torno dos quais uma parte da mais jovem poesia evoluiu fascinada e, acaso, apavorada. O outro seria repre­sentado por Ramos Rosa, aridez lírica, explorador incansável de um real próximo e inacessível, parede nua e crua onde a palavra aguça e perde os seus poderes, mas onde ao mesmo tempo reflui para o seu centro vazio, mistério sem deus dentro, cla­ridade cega. De Ramos Rosa parte para a geração seguinte, ou gente representativa dela, aquilo que um dos seus melhores poetas, e grande conhece­dor da nossa poesia contemporânea, Gastão Cruz, resumira como «exploração da ordem das virtuali­dades da palavra – em particular do nome como nome ou metáfora – destacando-a no discurso ou na página.»
[excerto de “Entre o Ser e o Silêncio. Cem anos de poesia portuguesa”, número especial da revista Phala (Lisboa, Assírio & Alvim, 1988, pp. 202-207)].