sexta-feira, 10 de abril de 2015

Herberto Helder ou o ensaio que falta

Sobre poucos poetas portugueses não tem escrito Eduardo Lourenço e basta percorrer a tábua de matérias do III volume das Obras Completas, que está em fase muito adiantada da sua preparação e que é organizado em torno do livro Tempo e Poesia, mas que incluirá muitos ensaios dispersos e inéditos dedicados a numerosos poetas pós-Orpheu (embora não apenas a estes), para se ficar com uma pequena ideia sobre esta evidência. Não deixa, por isso, de ser estranho que poucas, ou mesmo pouquíssimas, sejam as páginas que o ensaísta dedicou ao recentemente falecido Herberto Helder, nome maior de toda a poesia contemporânea. Sobre este raramente interrompido silêncio, se é que faz sentido pôr as coisas nestes termos, merece sem dúvida haver reflexão, até porque, no pouco que Eduardo Lourenço escreveu acerca do autor de Os Passos em Volta, encontramos trechos tão cativantes como parte do parágrafo (que a seguir se reproduz), extraído do ensaio, escrito nos anos Oitenta, “Entre o Ser e o Silêncio. Cem anos de poesia portuguesa”. O assunto tratado é o enquadramento da obra herbertiana no contexto da poesia da década de Cinquenta e, em especial, das suas relações com o surrealismo, bem como a influência que Herberto, juntamente com António Ramos Rosa, exerceu sobre as gerações poéticas seguintes. Claro que nem o tema (que não é excessivamente original), nem o espaço desta breve síntese acerca daquele que muitos chamam o século de ouro da nossa poesia, autorizam que se considere este curtíssimo excerto um ensaio de Eduardo Lourenço sobre Herberto Helder. Mas, como quase sempre que o ensaísta escreve sobre poesia, há aqui um fulgor e uma limpidez que permitem que não se perca a esperança de, um dia destes, se possa, enfim, ler esse ensaio que ainda falta. Herberto Helder merecia-o, sem dúvida. E Eduardo Lourenço talvez também o mereça. 

foto de Ler Eduardo Lourenço
«Quase toda a grande poesia portuguesa a partir dos anos 50 repercute a libertação que o surrea­lismo significou. A já então consagrada, como a de Eugénio de Andrade, da própria Sophia (os casos de Jorge de Sena e, sobretudo, de Cinatti rele­vam de outra leitura, como o de José Blanc de Por­tugal), dialogam com a nova prática poética. E de entre os grandes poetas dos últimos trinta anos, de Ramos Rosa e Luiza Neto Jorge a Herberto Hel­der que lhe dará uma expressão visionária e lite­ralmente fantástica, poucos são os que se situam nas suas margens ou conscientemente num outro espaço, como Jorge de Sena, Ruy Belo ou Antó­nio Osório ou Alberto de Lacerda. Pode pensar-se que o surrealismo, sobretudo na forma que assume em Cesariny e, sobretudo, Alexandre O’Neill, representa, sob forma lúdica, uma nova reificação do “eu”, um novo imperialismo da consciência poética individualizada e mesmo individual. Há algu­ma verdade nisso e que o Álvaro de Campos, “clássico à sua maneira” e sujeito preciso da sua cria­ção, seja referência explícita ou implícita dela, con­firmaria o que seria uma “regressão” modernista. Na verdade o “eu”, sem encenação da sua ficcio­nalidade, só na aparência ganha esse estatuto soli­dificado. O poema surrealista é intrinsecamente des-centrado, ontologicamente “anónimo”, não se contempla como lugar vazio que dramatiza a sua ausência, como em Pessoa, mas celebra-se quase euforicamente como in-significante, in-transcen­dente, não-sério. Melhor do que ninguém, Alexan­dre O’Neill deu a essa “insignificância” do eu, sarcástica e ludicamente apreendida, um estatuto tão popular. Caberia a Herberto Helder conceber a realidade como uma monstruosa e magnificente Metáfora e o conjunto da realidade e das suas manifestações como um arquipélago de metáforas ao mesmo tempo organicamente oníricas e oniri­camente orgânicas. Não admira que a sua fabu­losa alquimia poética seja um dos pólos em torno dos quais uma parte da mais jovem poesia evoluiu fascinada e, acaso, apavorada. O outro seria repre­sentado por Ramos Rosa, aridez lírica, explorador incansável de um real próximo e inacessível, parede nua e crua onde a palavra aguça e perde os seus poderes, mas onde ao mesmo tempo reflui para o seu centro vazio, mistério sem deus dentro, cla­ridade cega. De Ramos Rosa parte para a geração seguinte, ou gente representativa dela, aquilo que um dos seus melhores poetas, e grande conhece­dor da nossa poesia contemporânea, Gastão Cruz, resumira como «exploração da ordem das virtuali­dades da palavra – em particular do nome como nome ou metáfora – destacando-a no discurso ou na página.»
[excerto de “Entre o Ser e o Silêncio. Cem anos de poesia portuguesa”, número especial da revista Phala (Lisboa, Assírio & Alvim, 1988, pp. 202-207)].