sábado, 2 de maio de 2015

Maria Barroso: Socialismo e Ética*

Maria de Jesus Barroso
Para a nossa geração, Maria Barroso é a lembrança de uma frágil Antígona ibérica enclaustrada entre os muros brancos da “Casa de Bernarda Alba”. A vida deu-lhe ensejo de transpor do palco para a cena, sem artifícios da opressão humana, o seu puro grito de heroína habitada pela revolta e pela paixão da liberdade. 
É consolador reencontrá-lo intacto na veemência salutar da sua recente carta. Importa muito que o seu apelo em favor de um resistente angolano ameaçado de morte ou de prisão seja ouvido. É de esperar que encontre um eco justo. Mas para além dele, a carta de Maria Barroso coloca numa luz implacável uma questão poucas vezes abordada com lucidez e coragem como o merece: o da ética socialista e revolucionária. 
No mundo gelado do combate político sob a sigla revolucionária, uma tal questão parece relevar de considerações sem interesse, da pura ordem afectiva, sem verdadeiro alcance político “objectivo”. Dado como assente que a finalidade do combate socialista (em sentido genérico) é excelente, e tem a seu favor o celebrado “sentido da história”, parece digna de hamlets burgueses toda a forma de perplexidade ética, de interrogação em matéria de comportamento político. 
Não é de hoje a questão dos meios e dos fins, nem foi a nossa época de tentações totalitárias que inventou os conceitos de “razão de Estado ou de Realpolitik”. O mundo do poder qualquer que seja a sua forma ou natureza é um mundo trágico por excelência, uma prova e uma provação permanentes para todos os seus actores. Napoleão pôde escrever que a tragédia moderna era a política. Mas foi-o sempre. 
A Antígona de Sófocles é tão política como a Fedra de Racine ou Os Sequestrados de Altona. A única diferença é que no nosso tempo o combate político de forma revolucionária supôs ser ao mesmo tempo o combate por uma transparência das relações humanas capaz de abolir, enfim, a fatalidade trágica, a contradição insolúvel inerente ao mundo da política “burguesa”. 
Como era de esperar, esta mesma pretensão, justa como finalidade a atingir, tornou-se ela própria uma fonte de tragédias suplementares, tragédias do “bem” que não são menos implacáveis que as do “mal”. Entre a verdade global representada pelo partido com vocação messiânica, ou o Estado-Deus como verdade política encarnada, o homem “militante” é solicitado sem cessar entre a obediência regenerante do seu pendor individualista e a paixão crítica suscitada pelo contraste fatal entre a prática política efectiva e a miragem utópica da promessa. Entre o maniqueísmo que toda a acção supõe, como diz Malraux, e a liberdade que cada homem é, se trava o conflito que só a acção mesma decide. Mas nela se joga de cada vez o sentido global da vida que, na medida em que resulta de uma escolha para ser realmente humano, é fatalmente ético e supõe, por isso, uma referência, explícita ou implícita, a uma ética da acção, e para além dela à ideia e realidade de uma Ética. 
O conceito tem hoje um relento suspeito. Evoca em excesso a velha moral de cabeça de Medusa, repressiva e hipócrita, máscara por demais transparente dos valores invocados por uma sociedade injusta para perpetuar a sua injustiça. Contudo, não é possível acção alguma sem referência ética. E muito menos um combate socialista que não seja simultânea e imperativamente um combate ético, uma luta por uma nova imagem dos homens, por uma sociedade capaz de transcender positivamente os valores desviados mas jamais esquecidos que têm guiado a aventura da nossa humanização precária e perecível. 
O imperativo político em termos revolucionários supõe um imperativo ético, e só tem sentido através dele. Isto significa que ninguém o pode impor “de fora”, como aliás Kant e o cristianismo o ensinam, mas que é a descoberta, a criação, a invenção do agente humano enquanto livre agente da sua intérmina libertação. 
A história vivida da prática “socialista” é a história da dificuldade e da contradição espectacular entre a “bondade” dos fins e dos ideais propostos e a sua negação prática justificada como entorse passageiro, acidental, de um processo que não precisa de outra confirmação que o triunfo meramente político. 
Quem acompanhou, de dentro, os conflitos ideológicos, políticos, culturais da sociedade portuguesa desde os anos Quarenta sabe todavia que também entre nós, sob a forma cinzenta e críptica que a época requeria, existiram os émulos dos personagens que a títulos diversos ilustraram o tema da consciência revolucionária e da “consciência ética”. 
A Superioridade Moral dos Comunistas é um belo e provocante título e um texto que os Portugueses devem meditar com a atenção que merece, até porque é o mais vivido e sentido dos textos que conhecemos de Álvaro Cunhal. Seria pouco sério discuti-lo ou refutá-lo em duas linhas. É um texto que parece transformar num mistério essa questão capital das relações entre Socialismo e Ética. 
Enquanto convicção e ficção, fica-se impressionado com a força ética de um homem e de um militante que fala em nome de outros homens que foram (e são) capazes de sacrifícios fora do comum e põem na conta do combate socialista, tal como o entendem, um impressionante rol de vítimas. Mas há o resto, e o resto é imenso e inapagável. Há no mesmo campo, e muitas vezes nos mesmos homens, a sombra dura e fria de uma antiética que basta e sobra para destruir na raiz mesmo o que há de “verdade” nessa afirmação hiperbólica da “superioridade moral dos comunistas”. É essa sombra que a carta de Maria Barroso evoca em termos e com nomes próprios. Sombra nossa, questão posta a todos quantos não renunciaram a ver no socialismo a forma mais alta da conciliação entre a justiça social e a vocação ética dos indivíduos. Falhando-se como ética, o socialismo falha-se como resposta histórica. Quem poderá estar interessado numa falência que é a de uma antiga e tenaz esperança? 

* Maria de Jesus Barroso completa hoje noventa anos. Admirador da actriz desde os tempos de Coimbra, Eduardo Lourenço evoca a efeméride num artigo no Público (“Mais do que uma artista”, Público, 2/V/2015, p. 45). Assinalando a data, Ler Eduardo Lourenço recupera um outro texto do ensaísta publicado há quase quatro décadas e no qual, a pretexto também de Maria Barroso, desenvolve um tema que não perdeu actualidade: “Socialismo e Ética”, Opção, nº 3, 13/V/1976, p. 23. O texto foi reimpresso no livro O Complexo de Marx , Lisboa, Publicações D.Quixote, 1979, Col. “Participar, nº 13, pp.14-16.