quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Rio Seco

por Jaime Rocha*
Jaime Rocha (foto de Carlos Lopes)



Para Eduardo Lourenço


Tudo acontecera numa tarde,
as ruas estreitas, o calor, os cães
ausentes. Um homem chegara com
um corpo tapado, tentando que a sua
nudez reaparecesse enquanto se colava
às paredes das casas.

Havia ali uma memória, uma leitura que
se incluía na sombra como uma grande
ave suspensa, um peso que irradiava
do alcatrão. E carreiros, pequenos
carreiros que investiam sobre os muros
velhos, caminhos que saltavam
as vedações para se misturarem com as
hortas roídas pelo tempo ……………….

E o homem sorria como uma criança
abrigada nas silvas, num jogo que mexia
com os mortos, os seus mortos, os dedos
sujos de terra.

O silêncio marcava o abandono das
árvores, as formigas escondiam-se nas
fendas e apenas alguns pássaros
procuravam alimento, pássaros doces
destinados a reconstruir o ninho.

Aqui havia uma casa, com uma janela………….


E a aldeia tomava uma cor decisiva, um
rumo, apontando para o fim do Rio Seco,
para as campas, para a claridade fria.

Já depois dos cardos, já depois de atravessar
as pracetas despidas, o homem zangava-se
com as pedras, as falsas pedras que taparam
inesperadamente a cal.

Só os comboios o faziam voar, as estradas
abertas que avançavam sobre os charcos.

Atrás, da esquerda para a direita: Hélia Correia, Jaime Rocha e Eduardo Lourenço.À frente vêem-se ainda o actor Diogo Dória e a escritora Eduarda Dionísio




*O poema Rio Seco foi escrito por Jaime Rocha, Poeta e Dramaturgo, após uma visita com Eduardo Lourenço efectuada a São Pedro do Rio Seco, por ocasião das filmagens do documentário Regresso sem fim, realizado por Anabela Saint-Maurice, de aqui já se falou por diversas vezes e no qual participaram, entre outros, Hélia Correia, Gonçalo M. Tavares e Pedro Mexia. O poema foi publicado em Correntes d'Escritas. Revista de cultura literária da Póvoa de Varzim, nº 11, Póvoa de Varzim, Fevereiro de 2012, p. 37 e foi há pouco reimpresso em Suroeste. Revista de literaturas ibéricas, nº 4, Badajoz, 2014, p. 76. As duas fotos inéditas que aqui acompanham Rio Seco foram gentilmente cedidas pelo Poeta que, assinale-se, acaba de lançar o volume Lâmina (Língua Morta, 2014).