domingo, 12 de outubro de 2014

Quando cheguei a Coimbra...*

Imagens da Casa da Escrita, em Coimbra: a antiga Casa da Família Cochofel foi recuperada 
através de um esplêndido trabalho do Arquitecto João Mendes Ribeiro 
Quando cheguei a Coimbra, em 1940 (com 17 anos), o Neo-Realismo tinha já todo um passado de que eu ignorava tudo. A sua presença ideológica e crítica fizera-se ao longo dos anos 30, como é bem sabido. Nos finais dela aparecerão as suas primeiras manifestações significativas no campo da poesia e da ficção: Gaibéus. Dessa primeira vaga neo-realista iria encontrar em Coimbra, a partir de 1943, expoentes poético-ideológicos e filosófico-ideológicos do Neo-Realismo, os irmãos Namorado, Joaquim e Egídio. A outros que participaram nela como Fernando Namora, Vergílio Ferreira ou Mário Sacramento (de que ignoro, aliás, o contributo neo-realista desses anos) já os não conheci em Coimbra que tinham deixado, mas bem mais tarde ou nunca, como autores consagrados. A mesma coisa se passou com Luís de Albuquerque, da mesma ou próxima geração académica de Namora, Vergílio Ferreira e Mário Sacramento. O “meu” Neo-Realismo vivido será o do “Novo Cancioneiro”, com o seu pequeno mas intenso escândalo na aldeia coimbrã, objecto de sátiras e paródias, de que mais tarde venderia, com os meus novos amigos, uma das publicações de a Voz que Escuta, do malogrado Políbio Gomes dos Santos. Estávamos em 1944. Já então travara conhecimento com o autor de Turismo e Casa na Duna, meu companheiro de curso, um dos meus iniciadores literários e elo primeiro que me ligou ao que era o Neo-Realismo coimbrão. 


Como na época descrita por Namora, a magnífica casa de João José Cochofel, a sua largueza constituía para esse grupo uma espécie de lar e centro cultural. Havia algum picarismo nessa boémia neo-realista de que quase todos nós aproveitávamos, mesmo os não íntimos de Cochofel, como era o meu caso. Os amigos introduziam e convidavam os amigos como se a nobre morada fosse comum, perante a aceitação ou a condescendência activa dos seus donos-mecenas. Para o provincial que eu era, a atmosfera tinha algo de mágico. Deslumbrava-me, sobretudo, a alta e sumptuosa biblioteca, abarrotada das novidades da época, Saroyan, Faulkner, Steinbeck, Aragon, Silone, Dreiser, Michael Gold, Upton Sinclair, os brasileiros, centenas de outros que essa geração descobria, alguns no original, como Rui Feijó e o próprio Cochofel, creio eu. Além de Joaquim Namorado, maioral do grupo, frequentavam esse meio ou conviviam nele Carlos de Oliveira, João José Cochofel, Arquimedes da Silva Santos, com o seu ar de personagem dostoievskiano, Rui Feijó, Egídio Namorado e José Ferreira Monte. Eram todos – excepto o último – um pouco mais velhos do que eu e tinham, em geral, uma maturidade cultural e uma experiência literária de que os meus 19 ou 20 anos não se podiam gabar. Além do mais, embora isso não me fosse então muito sensível, quase todos eram o que se chamava “conscientes”, quer dizer, politicamente situados já numa perspectiva que de perto ou de longe alguma coisa teria a ver com o marxismo ou, pelo menos, com a referência mítica à Revolução de Outubro e as suas consequências no plano da luta ideológica mundial. 

Não era o meu caso. Mais estranho era que eu frequentasse essa movimentada confraria neo-realista. Suponho tê-la frequentado mais como amigo de Carlos de Oliveira e de Rui Feijó do que como membro “integrado” num grupo. O lado literário e cultural dela, a benevolência crónica de Joaquim Namorado para com um pássaro de arribação, a gentileza ou camaradagem estudantil dos outros, não impunham – ao menos nessa época – nenhuma pressão ideológica que me ofuscasse. Nem eu tinha importância que justificasse essa eventual solicitação.


* O texto de Eduardo Lourenço que aqui se publica é um excerto do artigo Como vivi a (pequena) história do Neo-realismo, publicado originariamente no Expresso em 1982 e que integra agora o II Volume das Obras Completas: Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista e outros Ensaios (pp.366-367), cujo lançamento se realizará no próximo dia 5 de Novembro pelas 18h, na Casa da Escrita em Coimbra, com a presença do Autor. 
Brevemente, Ler Eduardo Lourenço dará conta do programa completo de uma sessão rigorosamente a não perder.
As fotos que, com a devida vénia, aqui se reproduzem foram retiradas da página facebook de João Mendes Ribeiro Arquitecto, Lda.