quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O que falta ainda escrever sobre o "segundo" Carlos de Oliveira

Francisco Belard
Numa lúcida recensão crítica à segunda edição de Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, o jornalista do Expresso Francisco Belard, para além de elogiar francamente a obra do ensaísta, deixava escapar um quase lamento: «É pena que Eduardo Lourenço não tenha tido tempo (e esta obra esgotada há anos reclamava reimpressão) para estudar os efeitos do tempo no seu texto e, sobretudo, na própria literatura neo-realista (pensemos, por exemplo, na evolução de um Carlos de Oliveira)» (“Eduardo Lourenço Sentido e Forma da Poesia Neo-realista”, Revista do Expresso, Lisboa, 19/II/1983, p. 4). Dizer que é um quase lamento significa também admitir que Belard assinala que, em várias ocasiões, Eduardo Lourenço terá, de certo modo, preenchido essa lacuna que, quinze anos passados desde a 1ª edição, seria sobretudo visível em Sentido e Forma. Mas o jornalista evoca sobretudo o texto “A ficção dos anos 40 ou o Neo-Realismo e o resto”, texto de facto extraordinário e sintomaticamente dedicado ao seu colega e Amigo, mas que, apesar disso, talvez não seja o melhor dos exemplos para quem esperaria ver aí uma reflexão sobre os últimos livros publicados por Carlos de Oliveira.

Gastão Cruz
Poucos meses  após a terceira edição do livro (Gradiva, Outubro de 2007), o poeta Gastão Cruz, sublinhando que a obra poética de Carlos de Oliveira se pode, e deve, dividir em duas fases, parece retomar a pista lançada por Francisco Belard, escrevendo: «Seria do maior interesse que Eduardo Lourenço nos tivesse dado, ou venha a dar ainda, do segundo Carlos de Oliveira, uma leitura tão demorada e densa como a que nos deu do primeiro» (“A poesia de Carlos de Oliveira lida por Eduardo Lourenço”, A Vida da Poesia. Textos Críticos Reunidos, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008, p. 104).

Pedro Mexia

Curiosamente, dois dos mais conhecidos críticos de poesia de hoje (mas ao mesmo tempo imensamente diferentes entre si), António Guerreiro e Pedro Mexia, quando escrevem sobre esta mesma terceira edição de 2007, não põem em destaque os limites da leitura de Eduardo Lourenço. Pedro Mexia chega mesmo a escrever uma tese (algo contraditória?) que, em rigor, talvez possa estar implícita em Sentido e Forma, mas que não parece ser legítimo extrair directamente do livro de Eduardo Lourenço: «Se Carlos de Oliveira se tornou o único grande poeta neo-realista, foi porque em grande medida abandonou o neo-realismo» (“A revolução sem revolução”, Suplemento Ípsilon de Público, Lisboa, 11/I/2008, p. 38.). A leitura de António Guerreiro não é bem a mesma, mas nela também se não vislumbra nenhuma reserva à interpretação de Sentido e Forma, sustentando-se mesmo que «o finíssimo trabalho analítico de E.Lourenço consiste em mostrar os dilaceramentos internos da poesia neo-realista» (“Ver claro”, Suplemento Actual de Expresso, Lisboa, 26/I/2008, p. 45).
Carlos de Oliveira (1921-1981)

A recentíssima publicação do II Volume das Obras Completas, organizado justamente em torno do livro Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, confirma, pelo menos em parte, a ideia de que Eduardo Lourenço não dedicou à segunda parte da obra do autor de O Aprendiz de Feiticeiro a atenção que, segundo Francisco Belard e Gastão Cruz, esta exigiria. 
Com efeito, para além da muito juvenil recensão crítica publicada em Maio de 1945 (!!!) na revista Vértice ao livro (mais tarde renegado pelo autor) Alcateia, de Carlos de Oliveira apenas se encontrou, entre os dispersos e os inéditos disponíveis para publicação, um texto de 2011, com o título “O Autor de Uma abelha na Chuva”, ensaio publicado na revista Pessoa, editada pela Casa Fernando Pessoa. Esta escassez não deixa de ser estranha, tanto mais que a outros autores do grupo do Novo Cancioneiro (é o caso de Fernando Namora, por exemplo) Eduardo Lourenço dedicou, ao longos anos, diversos estudos.

António Guerreiro
No entanto, em entrevista precisamente concedida a António Guerreiro, Eduardo Lourenço dá algumas indicações preciosas que, por um lado, ajudam a compreender os motivos pelos quais escreveu  Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista e, por outro, sugerem o que poderia ser um estudo seu sobre o “segundo” Carlos de Oliveira:
«EL: Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista (...) foi um livro que escrevi, num ano em que estive desempregado, nos dois sentidos do termo, quando vim do Brasil, 1959-60. Só mais tarde é que percebi a verdadeira razão por que escrevi esse livro: foi para me reconciliar com o Carlos de Oliveira.
AG: Porquê “reconciliar”?
EL: Tinha havido uma história chatíssima, antes de partir para o estrangeiro, uma história que metia coisas de política, grupos, fidelidades e desvios. E eu vi-me metido no meio de uma zanga entre ele e o [Paulo] Quintela, com o [Miguel] Torga de permeio.
AG:  Politicamente o percurso de Carlos de Oliveira não sofre desvios?
EL: Houve uma altura em que se disse que alguns intelectuais, entre os quais o Carlos, tinham saído do Partido. É bem possível. Mas a última conversa que tive com ele, já ele estava doente, muito depois de 1974, du-me a impressão que, no essencial, se tinha conservado inteiramente fiel. Mas era alguém muito atento aos movimentos e às metamorfoses que se passavam no campo da literatura. Lembro-me como ficou fascinado com o Fernando Pessoa. E é essa atenção que determina um livro como Finisterra, que é uma autêntica revolução, completamente da sua escrita narrativa anterior. Mas sempre achei que o Carlos de Oliveira tinha um imaginário profundamente romântico, pessimista, nada vocacionado para a poesia neo-realista», (“Sou um dissidente da minha geração”, entrevista por António Guerreiro, Relâmpago. Revista de Poesia, nº 22, Lisboa, Abril de 2008, Fundação Luís Miguel Nava, p. 55).

Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007)
Enquanto se continua pacientemente à espera que Eduardo Lourenço responda ao desafio de Gastão Cruz, ele próprio autor de importantes ensaios sobre Carlos de Oliveira (cf. Vida da Poesia. Textos Críticos Reunidos, pp. 76-102), Ler Eduardo Lourenço relembra, da vastíssima bibliografia crítica que apareceu nas últimas décadas, dois  textos teóricos que duas excelentes leitoras (não por acaso elas também poetisas) dedicaram ao autor de Sobre o lado esquerdo. É o caso de Fiama Hasse Pais Brandão que publicou em 1975 um luminoso ensaio, dividido em duas partes, na revista Colóquio-Letras: “Nexos sobre a obra de Carlos de Oliveira”. Mas é, sem dúvida, também o caso de Rosa Maria Martelo, autora do magnífico Carlos de Oliveira e a referência em poesia (Porto, Campo das Letras, 1998), a sua dissertação de doutoramento aliás, e que acaba de publicar aquele que talvez seja um dos melhores volumes de poesia deste ano: Matéria (Averno, 2014).
Rosa Maria Martelo
Mas acerca dos autores da impressionante dimensão de Carlos de Oliveira é forçoso reconhecer que ficará sempre muito por escrever. E isso não é necessariamente um mal, claro.