Imagem a partir da pintura de Nikias Skapinakis: Delacroix no 25 de Abril em Atenas, 1975
Assistimos à arrogância impúdica das forças
da direita e dos saudosistas do passado.
Manuel Alegre, 9/4/78
Daí que se tenha andado na maior parte do tempo à deriva, nos quatro
anos de Democracia que já tivemos, não só por falta de orientações concretas
para a acção, como também à míngua de dirigentes de qualidade,
em número suficiente e com a determinação de as concretizar com êxito.
Rémy Freire, O Jornal de 7/4/78
Audácia, mais audácia.
Diário de Lisboa, Política de A a Z,
10/4/78
Manuel Alegre, 9/4/78
Daí que se tenha andado na maior parte do tempo à deriva, nos quatro
anos de Democracia que já tivemos, não só por falta de orientações concretas
para a acção, como também à míngua de dirigentes de qualidade,
em número suficiente e com a determinação de as concretizar com êxito.
Rémy Freire, O Jornal de 7/4/78
Audácia, mais audácia.
Diário de Lisboa, Política de A a Z,
10/4/78
A atmosfera nacional não permite celebrar na euforia o quarto aniversário da Revolução. Os povos não apreciam, aliás, as festas que eles próprios não concebem como expressão da sua alegria, força, vitalidade e autocelebração. Não há festejos de encomenda, nem celebrações ritmadas pelo acaso do calendário. Nas vésperas deste quarto aniversário, a Esquerda portuguesa não tem o direito de se enganar, nem de inimigo nem de alegria. A sua obrigação é a de encarar com lucidez e coragem o itinerário dramático que a conduziu, da esperança e do dinamismo históricos de 74, à morna planície do desencanto onde é hoje obrigada, sob o fogo quotidiano dos nostálgicos do antigo sistema, a organizar o que já, sem rasto de pessimismo, começamos a chamar “Resistência”. Quer dizer, a Esquerda tem de se encarar consigo mesma, reinventar o seu próprio projecto, reinventando com ele uma Revolução que se esboroa, não apenas nem sobretudo, sob os golpes da orgânica Direita portuguesa, mas sob a pulsão suicida da sua própria incoerência interna e a mortal complacência, senão conivência, daqueles que lhe deviam ter dado forma e mais não fizeram do que desfigurá-la.
Não é com prazer que se escrevem estas linhas numa hora que devia ser apenas a da exaltação e reconhecimento por uma data histórica que pôs fim (?) a décadas de conformismo político, ideológico e mental sob as quais floriu sem entraves o silêncio, a censura obrigatória, o terror seráfico, a tortura selectiva, a impunidade garantida da opressão como meio de existência cívica, moral e intelectual. Infelizmente, a realidade e verdade deste diagnóstico não foi durante essas décadas ressentida e vivida pela generalidade dos portugueses nos termos e nos moldes em que só uma activa minoria a sofreu, e deste engano de alma «ledo e cego» derivaram para os destinos da Revolução as mais desastrosas, mas previsíveis consequências. O povo que, sem consciência política da miséria de que era vítima, a não pôde fisicamente suportar, emigrou. E, emigrado, criou as condições de sobrevivência do regime que o condenava à emigração. O outro, o que ficou, adaptou-se a um sistema que a ele soube adaptar-se, cultivando o pendor burocratizante herdado do liberalismo do século XIX e glorificando, noite e dia, uma “ordem” que tem fundas raízes na pacata e nada aventurosa tradição caseira que nos é própria. Sem a guerra africana, sem a crise ocidental de 1973, o Sistema, odioso e odiado pela generalidade dos portugueses politizados (mas, não o esqueçamos, naturalmente minoritários), teria, sem dúvida, sobrevivido, embora com cedências de superfície. Tudo isso a Revolução de Abril abalou, mas com uma subitaneidade propícia à gestação de um novo sonambulismo de dupla face. A Direita, ferida politicamente de morte aparente, hibernou (ou emigrou) sob o choque. A Esquerda instalou-se, sem outra forma de processo, sem um mínimo de esforço para teorizar a sua própria situação e a do País, onde o “milagre” de Abril lhe abria, de repente, todas as portas, num espaço baptizado de democrático, como se o peso sociológico do maciço conformismo de quarenta anos se tivesse evaporado do horizonte pátrio. Hoje sabemos, ou sabem todos (como cedo alguns o souberam inutilmente), que a Revolução de Abril foi, desde o início, normalizada, vivida como um parêntesis necessário e incómodo por aqueles mesmos que ela trouxe à luz da ribalta, à parte o seu momento revolucionário, cujo núcleo resiste ainda, mas como um intolerável desafio, um obstáculo que cada dia as forças reorganizadas do eterno conservantismo nacional atacam, com feroz determinação e apático desinteresse dos seus naturais defensores.
Atacando uma Revolução que lhe destruía a impunidade cívica, o gozo económico desenfreado, a superioridade de condição e de estado, as diversas correntes da, no fundo, unitarista Direita portuguesa, cumprem o seu dever. As indignações, os protestos, o tardios alarmes, os reflexos escandalizados de muitos tenores da Esquerda inconsciente (e também sonambúlica e impune) contra as provocações, o gáudio revisteiro do triunfalismo direitista e extremo-direitista, não são a resposta da Esquerda ao processo suicidário que tem minado e continua a minar, aberta ou secretamente, a Revolução de Abril. Sem dúvida que, na boca dos coveiros da Revolução, esses clamores teatrais têm, ao menos, a vantagem de consolar (triste consolação) os que, há muito, assumiram, sem alegria nenhuma, o dever óbvio de Cassandras por conta própria. Sem dúvida, também, que não é este o momento de instaurar o processo político e moral desses coveiros da esperança socialista, despertada pela Revolução que comemoramos e inscrita numa Constituição em que esses mesmos coveiros colaboraram. A Esquerda portuguesa, no seu conjunto, é apenas suficiente para resistir à vaga contra-revolucionária que se espraia, com júbilo, numa Imprensa de sucesso garantido pela sua própria grosseria e agressividade, mas ambas só possíveis porque das profundezas de um povo que a Esquerda não soube convencer quando era tempo e, em particular, o poder que a representa, recebe o aval extasiado da sua permanente e insolente provocação. Reinventar a Revolução – retornando a sério e mesmo desde o começo as suas promessas vitais dinamizadoras – só é possível pela reinvenção dessa mesma Esquerda, pela sua reestruturação, o que supõe autocrítica em todos os quadrantes e, em especial, no da Esquerda ainda no Poder de braço dado mortal com uma Direita cujos jovens e incorruptíveis representantes proclamaram, com coerência louvável, que nem por sombra se pode contar com eles para se aliar com a juventude socialista. Quer dizer: aquela mesma cujos dirigentes conduzem o País a meias com os patrões de tão decididos opositores ao espírito da Revolução e à sua letra.
O inimigo da Revolução está dentro dos seus muros. Diz-se que está “civilizadamente”, como se isso fosse uma atenuante, quando é uma agravante. Diz-se também que essa presença, mais “formal” que efectiva, permite às forças de Esquerda actualmente no Poder um espaço de manobra e uma eficácia “socialistas” muito superiores às do Governo precedente. A observação tem alguma verdade, como é visível através da actuação e da vontade dinamizadoras de certos sectores, entre eles o da Saúde e da Cultura. Mas nenhum activismo sectorial, nenhum sucesso particular, poderá equilibrar, jamais, o autêntico cancro político que representa a fórmula subtil, mas mortífera para os destinos da Revolução que agora celebramos, da aliança PS-CDS. O que a classe política interina, obrigada ou cega pelo seu gosto do “combinismo” politiquista, produz, o simples cidadão, por instinto e reflexo ético, rejeita-o. É absolutamente inútil e mesmo contraproducente para a Esquerda portuguesa instituir Sá Carneiro como o papão da Revolução de Abril. Se acaso o é ou será, a outrem o deve. As revoluções só sucumbem às mãos dos revolucionários que as traem ou não sabem defender. É absurdo e completamente idiota querer apresentar ao País um Sá Carneiro e o seu PPD como mais reaccionários que Freitas do Amaral e o seu CDS, partido no Poder. A tragédia da nossa Revolução é a de estar já na defensiva, quer dizer, a de ter evoluído de tal forma que se tornou atacável, vulnerável. Nada há de anormal, nem de anticonstitucional, que um dirigente da Oposição (ou um simples cidadão) ataque – em Democracia, e em termos que não sejam de “prática subversiva” caracterizada aos olhos da Constituição – os órgãos de Soberania, quaisquer que eles sejam. A fragilidade da Revolução revela-se antes na incapacidade dos seus defensores autênticos em levar o ataque ao campo inimigo. A Revolução não pode viver de mitos nem da defesa escandalizada e oportunista dos seus oficiosos ou oficiais guarda-costas constitucionais. A Revolução defende-se marchando, impondo as suas exigências, os seus princípios, assumindo-os positivamente e não por procuração. Uma parte da Esquerda readquiriu os antigos reflexos oposicionistas. Bate-se vencida de antemão, de costas contra a parede, esperando que o socorro lhe venha do alto, como se não fosse ela mesma a Revolução em marcha, a sua autêntica face. Em vez de se perder em escaramuças estéreis por conta de quem tem meios para se defender bem e sozinho, a Esquerda deve instituir-se a si mesma como trincheira e conduzir, a partir dela, a sua guerra, quer dizer, o seu projecto social, político e económico, de molde a que um dia memorável não venha a ser no futuro, como já o é hoje, para muitos, em letra de forma, uma data que se glosa ironicamente ou se conspurca e nela e com ela os homens que à face da História por ela se responsabilizaram.
A reinvenção de Abril é ainda possível? O refluxo revolucionário é tão profundo que as dúvidas são legítimas. Mas não a pontos de fornecer mais um argumento à Direita triunfalista, que já não resiste à tentação de glosar, sob todos os tons, o “fim da Revolução”. O destino da Revolução repousa, ainda, na vontade, na decisão, na capacidade de resposta activa, na mobilização do País em torno de um projecto democrático de vocação socialista. Em termos de eficácia imediata política repousa, apesar de tanta decepção, na capacidade interna de o PS se reestruturar em volta do seu próprio e, até hoje, ainda não oficialmente renegado Programa. São muitos se... De qualquer modo, com este quarto aniversário chegou a hora da verdade. Se a Esquerda não se remobiliza em termos adequados, se o Poder não soluciona as suas mais graves contradições a nível político, social e ideológico, se as condições de vida não se agravarem em termos de caçarolismo chileno, é lícito esperar que se possa celebrar o próximo aniversário da Revolução com menos reservas e apreensões que o hoje. A Direita fará tudo para o relegar para o rol dos pesadelos passados. Que a Esquerda faça o seu dever, pondo na lapela da Revolução um cravo de irreversível esperança. Como há anos...
* Texto de Eduardo Lourenço redigido em Vence a 17 de Abril de 1978 e publicado no Diário Popular de 24 desse mesmo mês. O texto será depois reimpresso no livro O Complexo de Marx (Lisboa, Dom Quixote, 1979, pp. 180-184)