«Se as gerações futuras quiserem saber que país era este, que país é este,
é nos livros de António Lobo Antunes que elas vão lê-lo».
De 15 a 17 de Setembro o Teatro Municipal São Luiz em colaboração com as Publicações Dom Quixote dedica a sua programação a António Lobo Antunes. Sábado 17, às 18h30, Eduardo Lourenço estará presente para uma mesa-redonda com João Lobo Antunes (médico, ensaísta e irmão do escritor), numa conversa moderada por Maria Alzira Seixo*.
Não é a primeira vez que os dois escritores se cruzam. Por exemplo, em 2002, a Universidade de Évora promoveu o Colóquio Internacional António Lobo Antunes, onde se encontraram numa mesa redonda, moderada pelo então Reitor Manuel Ferreira Patrício. Nessa ocasião, Eduardo Lourenço refere-se já a um encontro anterior «uma espécie de sessão estranha, mano a mano, num bairro da cidade de Bordéus» do qual indica que «seria óptimo para nós dois, sobretudo para mim, que pudéssemos aqui 'repetir' esse encontro, que foi um convívio divertido, dialogante, de mútua surpresa para ambos».
Foto do encontro na Universidade de Évora, onde se pode ver, da esquerda para a direita:
Eduardo Lourenço, António Lobo Antunes e Manuel Ferreira Patrício (Diário do Sul, 19/XI/2002)
É desse encontro, que ficou guardado em livro editado pela Dom Quixote sob o título
A Escrita e o Mundo em António Lobo Antunes, que agora
Ler Eduardo Lourenço transcreve alguns excertos nos quais se poderá também reencontrar algumas questões matriciais para o pensamento de Eduardo Lourenço: tempo, identidade, a necessidade do confronto com a imagem que fomos construindo de nós próprios enquanto país, que se foi desintegrando com o cair da máscara do colonialismo, como condição para a nossa reinvenção...
«Estamos já no cerne da obra de Lobo Antunes, dominada vivência muito profunda de que nós somos (nós, Homens, a Humanidade) fundamentalmente tempo, fundamentalmente temporalidade, não só no sentido clássico e ter a atitude de qualquer coisa que flui, que modifica realmente as coisas, mas que é ele próprio, uma espécie de monstro que a si mesmo se devora e transforma. Tudo quanto no espelho desse tempo podemos olhar, mesmo se voltamos apenas o imaginário rosto para trás, já não é o mesmo que nós estávamos sendo há pouco tempo».
«António Lobo Antunes vai, pouco a pouco, fazer emergir um continente, uma realidade que é ao mesmo tempo nossa e uma realidade universal, a partir de uma visão carnal, concreta, que tem o seu apoio no presente e no tempo presente. A sua imaginação vai emergir no puro presente e vai lutar com esse presente, como se luta com o mar, como o náufrago luta com as ondas do mar para arrancar a esse presente o seu mistério, a sua força e para atravessar a realidade para qualquer espécie de porto, para qualquer espécie de saída. Mas, para já, o mais importante era recuperar uma realidade que nos implicasse (...) e na qual nós reconhecêssemos as experiências fundamentais da existência humana».
«A ficção de Lobo Antunes vai servir como revelador daquilo que nós mesmos não queríamos ver, que nós mesmos não queremos ver, não apenas essa morte exterior, brutal, trágica que ele encontrou em África, mas outra realidade mais profunda, a nossa realidade de seres confrontados com qualquer coisa ainda mais profunda que a morte, que é a do sofrimento, a da injustiça que nós infligimos aos outros, a nossa própria miséria, os nossos terrores sepultos. Tudo isso ele vai realizar através da sua ficção, vai realizar a verdadeira psicanálise, mas desta vez não mítica, de Portugal, mas psicanálise visceral, profunda, daquilo que nós somos ou daquilo que nós imaginamos realmente ser. É este aspecto da ficção de Lobo Antunes que mais me tocou, e que me toca».
«(...) é dessa visão à Jerónimo Bosch, mas de um Jerónimo Bosch de hoje, do presente, da quotidianidade, daquilo que é realmente subalterno, daquilo que é triste, daquilo que é doloroso, daquilo que é crepuscular e daquilo que é o avesso da vida, o avesso da realidade esplendorosa que ele vai ser o navegador. E é dessa realidade submersa, que ele traz, como se mergulhasse numa espécie de aquário, os peixes mais brilhantes. E, com isso, pouco a pouco, Lobo Antunes foi inventando um outro país, que é o nosso país».
«A obra de António Lobo Antunes é uma descida, não apenas nesse inferno particular que nós chamamos realmente de loucura, mas qualquer coisa de mais interessante e mais profundo. É uma descida a um subterrâneo, para empregar uma imagem de Dostoievski, que é um subterrâneo que sempre esteve presente, naturalmente, e que os grandes autores sempre foram capazes, de Dante até Dostoievski, de recuperar, mas que só de vez em quando emerge, só de vez em quando é reconhecido, só de vez em quando é que revela uma imagem onde nós nos reconhecemos. Eu, pessoalmente, reconheço-me nessa imagem. E, na literatura portuguesa, só há dois autores que desceram a esse tipo de profundidade: o brasileiro Machado de Assis e agora, em termos modernos, e mesmo pós-modernos (como dizem os nossos críticos), António Lobo Antunes; é esse mundo onde a razão e a “irrazão” estão profundamente relacionadas uma com a outra, como a carne e o espírito misturados, como o sol e a treva realmente misturados, esse é o mundo de António Lobo Antunes. E eu creio que o mapa mais próximo, mais verídico da nossa realidade agora, contemporânea, que nós possuímos, é aquele que se encontra na obra de António Lobo Antunes».