domingo, 12 de outubro de 2014

Quando cheguei a Coimbra...*

Imagens da Casa da Escrita, em Coimbra: a antiga Casa da Família Cochofel foi recuperada 
através de um esplêndido trabalho do Arquitecto João Mendes Ribeiro 
Quando cheguei a Coimbra, em 1940 (com 17 anos), o Neo-Realismo tinha já todo um passado de que eu ignorava tudo. A sua presença ideológica e crítica fizera-se ao longo dos anos 30, como é bem sabido. Nos finais dela aparecerão as suas primeiras manifestações significativas no campo da poesia e da ficção: Gaibéus. Dessa primeira vaga neo-realista iria encontrar em Coimbra, a partir de 1943, expoentes poético-ideológicos e filosófico-ideológicos do Neo-Realismo, os irmãos Namorado, Joaquim e Egídio. A outros que participaram nela como Fernando Namora, Vergílio Ferreira ou Mário Sacramento (de que ignoro, aliás, o contributo neo-realista desses anos) já os não conheci em Coimbra que tinham deixado, mas bem mais tarde ou nunca, como autores consagrados. A mesma coisa se passou com Luís de Albuquerque, da mesma ou próxima geração académica de Namora, Vergílio Ferreira e Mário Sacramento. O “meu” Neo-Realismo vivido será o do “Novo Cancioneiro”, com o seu pequeno mas intenso escândalo na aldeia coimbrã, objecto de sátiras e paródias, de que mais tarde venderia, com os meus novos amigos, uma das publicações de a Voz que Escuta, do malogrado Políbio Gomes dos Santos. Estávamos em 1944. Já então travara conhecimento com o autor de Turismo e Casa na Duna, meu companheiro de curso, um dos meus iniciadores literários e elo primeiro que me ligou ao que era o Neo-Realismo coimbrão. 


Como na época descrita por Namora, a magnífica casa de João José Cochofel, a sua largueza constituía para esse grupo uma espécie de lar e centro cultural. Havia algum picarismo nessa boémia neo-realista de que quase todos nós aproveitávamos, mesmo os não íntimos de Cochofel, como era o meu caso. Os amigos introduziam e convidavam os amigos como se a nobre morada fosse comum, perante a aceitação ou a condescendência activa dos seus donos-mecenas. Para o provincial que eu era, a atmosfera tinha algo de mágico. Deslumbrava-me, sobretudo, a alta e sumptuosa biblioteca, abarrotada das novidades da época, Saroyan, Faulkner, Steinbeck, Aragon, Silone, Dreiser, Michael Gold, Upton Sinclair, os brasileiros, centenas de outros que essa geração descobria, alguns no original, como Rui Feijó e o próprio Cochofel, creio eu. Além de Joaquim Namorado, maioral do grupo, frequentavam esse meio ou conviviam nele Carlos de Oliveira, João José Cochofel, Arquimedes da Silva Santos, com o seu ar de personagem dostoievskiano, Rui Feijó, Egídio Namorado e José Ferreira Monte. Eram todos – excepto o último – um pouco mais velhos do que eu e tinham, em geral, uma maturidade cultural e uma experiência literária de que os meus 19 ou 20 anos não se podiam gabar. Além do mais, embora isso não me fosse então muito sensível, quase todos eram o que se chamava “conscientes”, quer dizer, politicamente situados já numa perspectiva que de perto ou de longe alguma coisa teria a ver com o marxismo ou, pelo menos, com a referência mítica à Revolução de Outubro e as suas consequências no plano da luta ideológica mundial. 

Não era o meu caso. Mais estranho era que eu frequentasse essa movimentada confraria neo-realista. Suponho tê-la frequentado mais como amigo de Carlos de Oliveira e de Rui Feijó do que como membro “integrado” num grupo. O lado literário e cultural dela, a benevolência crónica de Joaquim Namorado para com um pássaro de arribação, a gentileza ou camaradagem estudantil dos outros, não impunham – ao menos nessa época – nenhuma pressão ideológica que me ofuscasse. Nem eu tinha importância que justificasse essa eventual solicitação.


* O texto de Eduardo Lourenço que aqui se publica é um excerto do artigo Como vivi a (pequena) história do Neo-realismo, publicado originariamente no Expresso em 1982 e que integra agora o II Volume das Obras Completas: Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista e outros Ensaios (pp.366-367), cujo lançamento se realizará no próximo dia 5 de Novembro pelas 18h, na Casa da Escrita em Coimbra, com a presença do Autor. 
Brevemente, Ler Eduardo Lourenço dará conta do programa completo de uma sessão rigorosamente a não perder.
As fotos que, com a devida vénia, aqui se reproduzem foram retiradas da página facebook de João Mendes Ribeiro Arquitecto, Lda.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Português Suave*

Eduardo Lourenço, na passada sexta-feira no Centro Cultural de Belém em Lisboa

«António Oliveira Salazar foi o “ditador mais hábil” do século XX europeu e “normalizou o país durante quase meio século”, tendo apenas uma minoria como oposição, afirmou esta sexta-feira o filósofo Eduardo Lourenço. Os portugueses não tinham, então apego suficiente à liberdade para se moverem? “A maioria não. (…) Todo o país estava numa calma soberana, embora os que eram contra pagassem a conta…” A explicação para esse “sono” dos portugueses estaria na falta de informação, por isso não é de estranhar que as coisas acontecessem assim. Ele próprio descobriu um mundo mágico, completamente diferente quando passou os Pirinéus pela primeira vez, confessou. Bem diferente é o caso dos protestos actuais em Hong Kong. “É extraordinário: a malta nova sabe com quem está confrontada, com gente que não brinca em serviço. Ali sim, é preciso uma coragem quase sobre-humana para enfrentar um regime tão organizado como aquele [o chinês], tão capaz de resolver o problema”, elogiou o filósofo durante uma sessão da conferência Portugal no Futuro organizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, no CCB. Eduardo Lourenço foi o escolhido para abrir o segundo tema – a liberdade em Portugal – e para tentar responder a perguntas como “Portugal tem uma cultura de liberdade?” ou “A liberdade é um produto da revolução ou da evolução? É uma conquista histórica ou um horizonte de realização?”. No seu jeito calmo e doce, Eduardo Lourenço não deu grandes respostas, desdramatizou cenários de falta de liberdade e deixou pistas para pensar. Questionado por um jovem sobre se os traumas em relação ao Estado Novo ainda dominam a sociedade portuguesa, o ensaísta diz que não, porque uma das características dos portugueses “é o que passou, passou”. A essa atitude individual, somou-se até a do regime democrático, que tem gerido uma “espécie de silêncio” sobre essa parte da História. “A nossa revolução não é uma revolução no sentido habitual, foi verdadeiramente sui generis, no bom sentido do termo à português”. Não há revoluções com flores. Mas na nossa houve. Não houve grandes vinganças, mas também não há nostalgias muito visíveis do antigo regime. Começa a ser qualquer coisa muito longínqua», afirmou Eduardo Lourenço. E exemplificou: só em 2014, devido à comemoração dos 40 anos da revolução de Abril é que o assunto se debateu a sério, houve colóquios, livros, filmes e séries que “revisitaram o 25 de Abril como nunca fora feito e como nenhum outro período da nossa História foi”. O que resta hoje dessa revolução? “Estamos confrontados, ao fim de 40 anos, com uma espécie de pausa dados os problemas que o país enfrenta. E se não fosse a televisão, provavelmente já teríamos tido outra revolução.» Que liberdade estamos então a preparar para as gerações vindouras?, perguntou Carlos Vaz Marques com quem o filósofo conversou durante hora e meia. “A liberdade não é uma espécie de coisa que nos cai do céu. É qualquer coisa que é fabricada pela vontade de cada um dos actores da vida cívica que somos nós. Os frutos da liberdade são aqueles que são preparados, pela iniciação de cada um de nós na vida. E essa iniciação passa pela família, pela educação que se recebe, mas sobretudo pelo ensino, que é a base de uma democracia com esse nome. A escola é que é o centro daquilo que o futuro pode ter de diferente.” Eduardo Lourenço considera que, apesar do recrudescimento em força de movimentos extremistas, como o de Marine Le Pen em França, “não há” neste momento um risco de regressão das liberdades, embora admita que há alguns perigos à espreita numa ou noutra parte do globo. Como é o caso das revoluções no mundo islâmico. “O Estado Islâmico como entidade mítica e como referência cultural, religiosa, ideológica, vai desde Marrocos até à Indonésia. Há ali um alfobre quase infinito para a Jihad recrutar gente durante muitos anos.» Mas hoje, os principais inimigos da liberdade, na verdade, “somos todos nós”. “Ninguém está à altura das promessas”, aponta o filósofo. Sobre o Estado, a resposta é a mesma: “O Estado somos nós. O Estado não tem outra realidade que não o conjunto dos cidadãos. Ele está lá como vontade expressa” de quem vota e “cumpre as funções que a Constituição permite”. “E nós todos, em vez de considerarmos o Estado como inimigo, temos que pensar que somos responsáveis por ele porque o elegemos.” Eduardo Lourenço já não se preocupa que o Homem seja dominado pela máquina. Não? Não, porque “já ultrapassou; já é isso que acontece; já estamos na ficção científica e nem sequer temos capacidade para acompanhar essa realidade porque ela nos ultrapassou”. Ele próprio diz que fica “pendurado naquele objecto de fascínio chamado televisão”. Internet? “Nunca visitei.” E sente-se um info-excluído? “Não sei, sou de um analfabetismo comovente.»



*O primeiro texto e a foto que aqui se publica reproduzem, com a devida vénia,  o teor de um artigo assinado por Maria Lopes na edição electrónica do jornal Público: http://www.publico.pt/politica/noticia/portugal-viveu-o-regime-de-salazar-sob-uma-calma-soberana-afirma-eduardo-lourenco-1671816.
Reproduz-se também uma outra versão, saída em papel, no sábado passado 4/X/2014, p. 6. 

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O que falta ainda escrever sobre o "segundo" Carlos de Oliveira

Francisco Belard
Numa lúcida recensão crítica à segunda edição de Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, o jornalista do Expresso Francisco Belard, para além de elogiar francamente a obra do ensaísta, deixava escapar um quase lamento: «É pena que Eduardo Lourenço não tenha tido tempo (e esta obra esgotada há anos reclamava reimpressão) para estudar os efeitos do tempo no seu texto e, sobretudo, na própria literatura neo-realista (pensemos, por exemplo, na evolução de um Carlos de Oliveira)» (“Eduardo Lourenço Sentido e Forma da Poesia Neo-realista”, Revista do Expresso, Lisboa, 19/II/1983, p. 4). Dizer que é um quase lamento significa também admitir que Belard assinala que, em várias ocasiões, Eduardo Lourenço terá, de certo modo, preenchido essa lacuna que, quinze anos passados desde a 1ª edição, seria sobretudo visível em Sentido e Forma. Mas o jornalista evoca sobretudo o texto “A ficção dos anos 40 ou o Neo-Realismo e o resto”, texto de facto extraordinário e sintomaticamente dedicado ao seu colega e Amigo, mas que, apesar disso, talvez não seja o melhor dos exemplos para quem esperaria ver aí uma reflexão sobre os últimos livros publicados por Carlos de Oliveira.

Gastão Cruz
Poucos meses  após a terceira edição do livro (Gradiva, Outubro de 2007), o poeta Gastão Cruz, sublinhando que a obra poética de Carlos de Oliveira se pode, e deve, dividir em duas fases, parece retomar a pista lançada por Francisco Belard, escrevendo: «Seria do maior interesse que Eduardo Lourenço nos tivesse dado, ou venha a dar ainda, do segundo Carlos de Oliveira, uma leitura tão demorada e densa como a que nos deu do primeiro» (“A poesia de Carlos de Oliveira lida por Eduardo Lourenço”, A Vida da Poesia. Textos Críticos Reunidos, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008, p. 104).

Pedro Mexia

Curiosamente, dois dos mais conhecidos críticos de poesia de hoje (mas ao mesmo tempo imensamente diferentes entre si), António Guerreiro e Pedro Mexia, quando escrevem sobre esta mesma terceira edição de 2007, não põem em destaque os limites da leitura de Eduardo Lourenço. Pedro Mexia chega mesmo a escrever uma tese (algo contraditória?) que, em rigor, talvez possa estar implícita em Sentido e Forma, mas que não parece ser legítimo extrair directamente do livro de Eduardo Lourenço: «Se Carlos de Oliveira se tornou o único grande poeta neo-realista, foi porque em grande medida abandonou o neo-realismo» (“A revolução sem revolução”, Suplemento Ípsilon de Público, Lisboa, 11/I/2008, p. 38.). A leitura de António Guerreiro não é bem a mesma, mas nela também se não vislumbra nenhuma reserva à interpretação de Sentido e Forma, sustentando-se mesmo que «o finíssimo trabalho analítico de E.Lourenço consiste em mostrar os dilaceramentos internos da poesia neo-realista» (“Ver claro”, Suplemento Actual de Expresso, Lisboa, 26/I/2008, p. 45).
Carlos de Oliveira (1921-1981)

A recentíssima publicação do II Volume das Obras Completas, organizado justamente em torno do livro Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, confirma, pelo menos em parte, a ideia de que Eduardo Lourenço não dedicou à segunda parte da obra do autor de O Aprendiz de Feiticeiro a atenção que, segundo Francisco Belard e Gastão Cruz, esta exigiria. 
Com efeito, para além da muito juvenil recensão crítica publicada em Maio de 1945 (!!!) na revista Vértice ao livro (mais tarde renegado pelo autor) Alcateia, de Carlos de Oliveira apenas se encontrou, entre os dispersos e os inéditos disponíveis para publicação, um texto de 2011, com o título “O Autor de Uma abelha na Chuva”, ensaio publicado na revista Pessoa, editada pela Casa Fernando Pessoa. Esta escassez não deixa de ser estranha, tanto mais que a outros autores do grupo do Novo Cancioneiro (é o caso de Fernando Namora, por exemplo) Eduardo Lourenço dedicou, ao longos anos, diversos estudos.

António Guerreiro
No entanto, em entrevista precisamente concedida a António Guerreiro, Eduardo Lourenço dá algumas indicações preciosas que, por um lado, ajudam a compreender os motivos pelos quais escreveu  Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista e, por outro, sugerem o que poderia ser um estudo seu sobre o “segundo” Carlos de Oliveira:
«EL: Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista (...) foi um livro que escrevi, num ano em que estive desempregado, nos dois sentidos do termo, quando vim do Brasil, 1959-60. Só mais tarde é que percebi a verdadeira razão por que escrevi esse livro: foi para me reconciliar com o Carlos de Oliveira.
AG: Porquê “reconciliar”?
EL: Tinha havido uma história chatíssima, antes de partir para o estrangeiro, uma história que metia coisas de política, grupos, fidelidades e desvios. E eu vi-me metido no meio de uma zanga entre ele e o [Paulo] Quintela, com o [Miguel] Torga de permeio.
AG:  Politicamente o percurso de Carlos de Oliveira não sofre desvios?
EL: Houve uma altura em que se disse que alguns intelectuais, entre os quais o Carlos, tinham saído do Partido. É bem possível. Mas a última conversa que tive com ele, já ele estava doente, muito depois de 1974, du-me a impressão que, no essencial, se tinha conservado inteiramente fiel. Mas era alguém muito atento aos movimentos e às metamorfoses que se passavam no campo da literatura. Lembro-me como ficou fascinado com o Fernando Pessoa. E é essa atenção que determina um livro como Finisterra, que é uma autêntica revolução, completamente da sua escrita narrativa anterior. Mas sempre achei que o Carlos de Oliveira tinha um imaginário profundamente romântico, pessimista, nada vocacionado para a poesia neo-realista», (“Sou um dissidente da minha geração”, entrevista por António Guerreiro, Relâmpago. Revista de Poesia, nº 22, Lisboa, Abril de 2008, Fundação Luís Miguel Nava, p. 55).

Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007)
Enquanto se continua pacientemente à espera que Eduardo Lourenço responda ao desafio de Gastão Cruz, ele próprio autor de importantes ensaios sobre Carlos de Oliveira (cf. Vida da Poesia. Textos Críticos Reunidos, pp. 76-102), Ler Eduardo Lourenço relembra, da vastíssima bibliografia crítica que apareceu nas últimas décadas, dois  textos teóricos que duas excelentes leitoras (não por acaso elas também poetisas) dedicaram ao autor de Sobre o lado esquerdo. É o caso de Fiama Hasse Pais Brandão que publicou em 1975 um luminoso ensaio, dividido em duas partes, na revista Colóquio-Letras: “Nexos sobre a obra de Carlos de Oliveira”. Mas é, sem dúvida, também o caso de Rosa Maria Martelo, autora do magnífico Carlos de Oliveira e a referência em poesia (Porto, Campo das Letras, 1998), a sua dissertação de doutoramento aliás, e que acaba de publicar aquele que talvez seja um dos melhores volumes de poesia deste ano: Matéria (Averno, 2014).
Rosa Maria Martelo
Mas acerca dos autores da impressionante dimensão de Carlos de Oliveira é forçoso reconhecer que ficará sempre muito por escrever. E isso não é necessariamente um mal, claro.

domingo, 28 de setembro de 2014

Um outro poema ao lado do poema*

Lídia Jorge e Frei Bento Domingues hoje no Público

«Lídia Jorge: Porque o encanta a literatura? Não parece encantar tanta gente assim. 
 Frei Bento Domingues: Porque através dela se entra numa zona de nós que é reconhecida e ao mesmo tempo posta em causa. A literatura é um modo de pôr em causa. O Eduardo Lourenço diz que o comentário do poema só pode ser o poema. Ele, quando comenta, não explica. Ele faz um outro poema ao lado do poema. Só assim se entende a literatura, a pintura, ou a música, vivendo por dentro, pondo o nosso mundo em questão. A arte serve para isso.» 






*Excerto da entrevista realizada por Lídia Jorge a Frei Bento Domingues hoje no jornal Público.
http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/estou-no-meio-do-misterio-1670822

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Eduardo critica Eduardo

Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista (capa da primeira edição, 1968)
Desde a sua primeira edição, surgida em 1968, que Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista de Eduardo Lourenço parece ter merecido larga atenção da crítica. De facto, na imprensa do Porto e de Lisboa da época foram diversas as referências ao livro de um autor que, também (mas não só) por viver em França, não tinha o reconhecimento de que hoje indiscutivelmente goza na vida cultural portuguesa. Sem qualquer preocupação de exaustividade, é possível recordar algumas das recensões, mais ou menos críticas (embora quase sempre elogiosas) que apareceram nas páginas literárias e nas revistas do segundo semestre do ano que, em Paris, deu um novo sentido à palavra Maio. Dessas leituras (cujo interesse, qualidade e importância não é, evidentemente, sempre o mesmo) daqui se dará hoje da efectuada por Eduardo Prado Coelho, celebrando-se assim a novíssima edição do II Volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço, Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista e outros ensaios (Lisboa, Gulbenkian, 2014). 

Eduardo Prado Coelho escreve duas recensões a Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista em 1968
Para ser inteiramente rigoroso, importa começar por registar que o artigo tem duas partes – mais tarde reunidas, expurgadas de gralhas e completadas em O Reino Flutuante. Exercícios sobre a razão e o discurso (Lisboa, Edições 70, 1973, pp. 149-161) –, nas quais Eduardo Prado Coelho dedica a sua atenção àquela «que é com certeza uma obra modelar para a crítica literária em Portugal» (Diário de Lisboa, 15/VIII/1968, p. 8). Não cabe aqui discutir tudo o que está em jogo no diálogo que se vai estabelecendo entre os dois Eduardos. Eduardo Prado Coelho, naquela que é sem dúvida uma das leituras mais pregnantes que até hoje se fizeram de Sentido e Forma, avança uma série de reservas conceptuais e metodológicas que exigem uma cuidadosa revisitação. Uma pista possível apenas: será que Poesia 61 (ou seja, poetas como Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta e Casimiro de Brito) se move fora do universo neo-realista? Eduardo Prado Coelho parece sugerir o contrário, dizendo que, para além das diferenças que saltam à vista, pode haver uma maior fidelidade estética onde se julga que ela não existe.
Eduardo Lourenço não levou a mal o tom crítico da recensão do Eduardo mais jovem. Pelo contrário. Nasceu aí uma enorme amizade ficou para sempre. Lendo uma carta que este escreverá no final do ano de 1968 em Lisboa, percebe-se que o autor criticado gostou de o ter sido e desse gosto fez saber também por carta ao seu crítico que, por seu turno, confessa: «Meu caro Eduardo Lourenço: Foi com grande alegria que recebi a sua carta» (Eduardo Prado Coelho, “Carta a Eduardo Lourenço”, Lisboa, 28/XII/1968, Colóquio-Letras, nº 171, Maio de 2009, pp. 403-406). A missiva de Eduardo Lourenço não está, tanto quanto se saiba, publicada, mas, a avaliar pela resposta, deverá ser fascinante e assim justifica a “grande alegria” de Eduardo Prado Coelho, na altura apenas com vinte e quatro anos, embora já com uma importante presença na cena literária lisboeta. Nessa carta (ela também com um valor documental extraordinário), o jovem crítico chama a atenção para o facto de os seus textos não terem sido integralmente publicados no jornal: 
«A minha crítica tinha dois cortes: a par de Carlos de Oliveira, […] e Lautréamont, havia o nome de Herberto Helder. Mas [o polémico livro] a Apresentação do Rosto tinha-o tornado temporariamente maldito, e a Censura eliminou-o. Na segunda parte, no 4º parágrafo, faltam vários períodos. Eu tentava encontrar a coexistência entre a sua definição de poesia e o projecto neo-realista, servindo-me das suas próprias frases; “canto de paraíso ausente”, etc. Também isso a Censura cortou» (Ibidem, p. 406). De facto, na versão do texto que aparece no livro O Reino Flutuante, quer o nome de Herberto Helder, quer o excerto eliminado pela censura (e que, em rigor, é uma citação directa do próprio texto de Eduardo Lourenço) já aparecem.  
Herberto Helder terá passado a ser autor maldito para a censura
 do Estado Novo depois do polémico Apresentação do rosto

José Marinho assina uma das duas recensões críticas
ao livro de Eduardo Lourenço na revista Colóquio
Por outro lado, Eduardo Prado Coelho anuncia um outro artigo sobre o livro Sentido e Forma, justificando-o através de motivos bastante prosaicos: «Fiz uma versão desta crítica para a revista Colóquio com intuito meramente económico. Com o texto de José Marinho, não sei que destino levará. Mas, como trabalho, é desprovido de interesse: puro resumo e desenvolvimento jornalístico das ideias centrais do texto do Diário de Lisboa» (Ibidem). O resto da carta explica os apertos financeiros do jovem crítico, na altura recém-casado e com «uma filha de 16 meses – que é a Alexandra» (Ibidem, p. 405). A verdade é que a Colóquio acabou por publicar duas recensões ao livro de Eduardo Lourenço. Assim, em Outubro aparece o texto de José Marinho que, por diversas razões, justificaria uma análise mais pormenorizada. Com a data de Dezembro, mas tendo chegado às bancas provavelmente um pouco mais tarde, o nº 51 da revista apresenta o segundo artigo de Eduardo Prado Coelho que, ao contrário do que este parece dizer, traz pelo menos um dado novo, a saber: «Preocupou-se Eduardo Lourenço, e em alto grau, com o pormenor, com a análise esmiuçada, com a leitura terra a terra, edição a edição, dos autores de que se decidiu ocupar. Lamentemos apenas que Mário Dionísio seja excluído do projecto, dado que o seu testemunho seria significativo» (Eduardo Prado Coelho, “Eduardo Lourenço Sentido e Forma da Poesia Neo-realista”, Colóquio, nº 51, Lisboa, Dezembro de 1968, p. 73).
Mário Dionísio: um dos ausentes de Sentido e Forma?
Ora, esse lamento é feito pelo próprio Eduardo Lourenço que, em nota de rodapé, afirma: «Lamentamos, por deficiência de documentação, não poder contrastar como se devia e requeria o caso destes três poetas com os de um Namora e sobretudo de Mário Dionísio e Manuel da Fonseca» (Sentido e Forma da Poesia Neo-realista, Lisboa, Ulisseia, 1968, p. 18). As atribulações da vida do novus pater familiae justificam decerto a não leitura desta confissão em pé de página. Um pormenor que não desmerece em nada a agudeza interpretativa do jovem crítico. Também por isso Ler Eduardo Lourenço não poderia estar mais de acordo com as muito recentes palavras de Delfim Sardo que admitiu: «Tenho umas saudades imensas de Eduardo Prado Coelho.» (http://www.publico.pt/portugal/noticia/o-intelectual-acabou-1670055).

domingo, 21 de setembro de 2014

Sólo en este último caso existe el poema, Dans ce dernier cas seulement le poème existe, Solo in quest’ultimo caso la poesia esiste, ...

Ler Eduardo Lourenço gosta de insistir na ideia seguinte: uma das melhores formas de tentar ser merecedor dos nossos grandes escritores é realizar um coerente e rigoroso programa de traduções e edições dos seus textos em outras línguas. Caso contrário, a divulgação das suas obras ficará irremediavelmente confinada aos leitores que conhecem português. Claro que, mesmo no amplíssimo universo da lusofonia, é possível e até exigível que a circulação dos autores portugueses seja realizada de modo mais efectivo e articulado – mas isso é conversa para outra ocasião. 
Eduardo Lourenço não é porventura dos ensaístas portugueses que terá maior razão de queixa quanto à tradução dos seus escritos para outras línguas. No entanto, essas traduções devem-se quase sempre aos esforços individuais de admiradores da sua obra, destacando-se entre eles o trabalho de sua Mulher, Annie Faria, falecida há cerca de um ano, pela tradução de quase todas as versões em francês dos ensaios do marido. Ainda assim, talvez continue a faltar uma verdadeira e sistemática política de tradução dos livros mais relevantes do autor de O Labirinto da Saudade. Se, por um lado, é digna de nota a (inesperada?) edição em sérvio de Razočarana Evropa: prilozi za jednu evropsku mitologiju, tarefa extremamente meritória levada a cabo por Anamarija Marinovič (Mediterran Publishing, 2011), por outro, é difícil de compreender que em inglês não haja, tanto quanto Ler Eduardo Lourenço possa afiançar, mais do que duas edições realizadas nos Estados Unidos: Chaos and Splendor and Other Essays (University of Massachusetts Dartmouth, 2002) e This little lusitanian house: essays on portuguese culture (Brown, 2003). 


Se se atentar, por exemplo, na repercussão que a obra de Fernando Pessoa tem no mundo anglófono, não deixa de ser surpreendente e lamentável que ainda não existam disponíveis em tradução inglesa frases tão memoráveis como estas: «De duas uma: ou essa leitura não o subtrai à tranquilidade morna da sua existência, inscrevendo-se apenas nela como uma “informação” suplementar, ressentida acaso como uma banalidade; ou essa leitura arranca o espírito da sua claridade habitual, entenebrece-o, destilando um pavor feliz na falsa infinitude da sua consciência sonâmbula. Só neste último caso o poema existe, abrindo em nós avenidas para nenhum jardim, inundando de luz nenhum espaço que possa ser nomeado mas de tal modo que claramente percebemos que devimos outro, quer dizer, o mesmo, mas como iluminado por dentro e sem fim. É a “joy for ever” de Keats, a existência do poema em nós e nós nele», Pessoa Revisitado – Leitura Estruturante do Drama em Gente, Porto, Editorial Inova, 1978, p. 16.
Relembre-se o contexto. Eduardo Lourenço acabara de citar dois poemas de Fernando Pessoa, respectivamente “Não meu, não meu é quanto escrevo” e o soneto “Súbita mão de algum fantasma oculto”, e partilha, com o leitor da sua obra Pessoa Revisitado, o testemunho da sua experiência face ao génio do poeta. 
Ora, deste excerto do capítulo “Considerações pouco ou nada intempestivas”, são já felizmente  conhecidas versões em espanhol (por Ana Márquez), em francês (por Annie de Faria) e até em italiano (por Daniela Stegagno que, assinale-se, é a autora da primeira tese de doutoramento dedicada à obra do ensaísta). Em homenagem ao trabalho silencioso e imprescindível dos tradutores (neste caso, das tradutoras), Ler Eduardo Lourenço recupera o modo como estas luminosas palavras de Pessoa Revisitado parecem ganhar novo fôlego noutras línguas, alargando assim o raio de influência do pensamento do ensaísta: 

Foto Ler Eduardo Lourenço

 I

«Una de dos: o bien esta lectura no impide al lector proseguir tranquilamente su cómoda existencia, incorporando aquélla solamente como una “información” complementaria, sentida al fondo como una banalidade; o bien esa lectura despoja al espíritu de su claridad habitual, entenebreciéndolo, destilando un pavor feliz en el falso infinito de su conciencia sonámbula. Sólo en este último caso existe el poema, abriendo dentro de nosotros avenidas que no conducen a ningún jardín, inundando de luz ningún espacio que podamos nombrar, pero haciéndolo de tal manera que advertimos claramente que nos hemos transformado en otro, es decir, el mismo, pero infinito y como iluminado por dentro. Es la “joy for ever” de Keats, la existencia del poema en nosotros y de nosotros en él», Pessoa Revisitado – Lectura estructurante del “drama en gente”, Valencia, Pre-textos, 2006, traducción de Ana Márquez, p. 13. 

II
«De deux choses l’une: ou cette lecture nous soustrait à la tiède tranquillité de notre existence, s’inscrivant seulement en elle comme “information” supplémentaire, ressentie peut-être comme une banalité; ou cette lecture arrache notre esprit à son clarté habituelle, l’obscurcit, distillant un effroi heureux dans la fausse infinitude de sa conscience de somnambule. Dans ce dernier cas seulement, le poème existe, ouvrant en nous des avenues qui ne mènent à aucun jardin, inondant de lumière un espace qui n’a pas de nom, mais de telle manière que nous sentons clairement que nous devenons autre, c'est-à-dire, la même, mais comme éclairé au-dedans et à jamais. C'est la joy for ever de Keats, l'existence du poème en nous, et de nous en lui», Pessoa l’étranger absolu – Essai, Paris, éditions Métaillé, 1990, traduit du portugais par Annie de Faria, p. 9. 

III
«Una delle due: o questa lettura non sottrae lo spirito alla tiepida tranquillità della sua esistenza e vi si iscrive solo come una “informazione” supplementare, considerata quasi una banalità; oppure lo strappa dalla sua chiarezza abituale e lo offusca, infondendo un felice timore nella falsa infinitezza della sua coscienza sonnambula. Solo in quest’ultimo caso la poesia esiste, apre in noi viali per nessun giardino, inonda di luce nessuno spazio che possa essere nominato, ma in modo che noi percepiamo chiaramente che devimos altro, vale a dire, lo stesso, ma in modo tale che percepiamo chiaramente che divientiamo altro, ossia, lo stesso, ma come illuminato dall’interno e senza fine . È la “joy for ever” di Keats, l'esistenza della poesia in noi e di noi in essa», Fernando Re Della Nostra Baviera – Dieci saggi su Fernando Pessoa, Roma, edizione Empirìa, 1997, a cura di Daniela Stegagno, p. 13. 


Registe-se para terminar que, no caso da edição francesa de Pessoa Revisitado, houve apenas uma alteração no título, ao contrário da versão espanhola que traduziu literalmente o nome do livro que, curiosamente, também sofrera ligeiras alterações nas várias edições portuguesas. Já Daniela Stegagno decidiu traduzir o capítulo “Considerazioni poco o affatto intempestive”, juntamente com quatro ensaios anteriormente aparecidos em Poesia e Metafísica (“Fernando Pessoa o lo straniero assoluto”, “Pessoa o la realtà como finzione”, “Considerazioni sul Proto-Pessoa” e “L’infinito Pessoa”) para incluir no seu Fernando Re Della Nostra Baviera que contém apenas cinco capítulos da edição portuguesa com o título homónimo.