sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

De regresso ao comentário político


Eduardo Lourenço esteve ontem à noite no Jornal da Noite de Mário Crespo, em pleno prime-time da SIC Notícias. Foram cerca de trinta minutos de filosofia em directo que o visitante do blog poderá ver (ou rever), bastando para tal clicar no seguinte endereço: 
http://sicnoticias.sapo.pt/programas/jornaldas9/2014/01/23/situacao-social-e-politica-em-analise
Ler Eduardo Lourenço permite-se destacar as últimas palavras da entrevista, na qual Eduardo Lourenço lembrou a figura e a obra do poeta e professor universitário José Terra que faleceu na semana passada em Paris. José Terra, poeta de uma geração imediatamente posterior à de Eduardo Lourenço, foi juntamente com António Luís Moita, António Ramos Rosa, Raul de Carvalho e Luís Amaro, um dos elementos fundadores e principais responsáveis pela revista Árvore - Folhas de Poesia (1951-53), onde, recorde-se, logo no primeiro fascículo (publicado no Outono de 1951) Eduardo Lourenço publicou o luminoso ensaio  Esfinge ou a Poesia, mais tarde inserido no livro Tempo e Poesia. Dir-se-á que esta espécie de nota de rodapé que Eduardo Lourenço dedicou à memória de um poeta extravasou, de alguma maneira, os limites do comentário político. De um certo ponto de vista, mais técnico, talvez isso seja certo. Mas, por outro lado, que melhor forma poderia escolher o ensaísta para intervir politicamente senão reclamando, perante o olhar ao mesmo tempo admirativo e desconcertado de Mário Crespo e as câmaras da televisão, a atenção para a importância da função dos poetas? Em suma, tratou-se de um momento televisivo e político inesquecível.
José Terra (1928-2014)

Esta intervenção pública segue-se a, pelo menos, duas outras que ocorreram na passada quarta-feira, dia em que participou num AAA (Animado Almoço Ânimo), organizado pela Associação 25 de Abril em Lisboa e de que a foto acima, de autoria de Rui Gaudêncio no jornal Público, dá testemunho. Nela pode ver-se o ensaísta e o capitão de Abril Vasco Lourenço. 

Ao fim da tarde desse mesmo dia 22, no Museu Nacional de Arte Antiga, Eduardo Lourenço falou sobre o Retrato de D. Sebastião do pintor quinhentista Cristovão de Morais. Poder-se-á talvez dizer que a intervenção televisiva condensou de certa forma elementos das duas outras alocuções. Ler Eduardo Lourenço saúda o regresso do ensaísta ao comentário da actualidade política. Talvez Portugal precisasse deste regresso, mesmo se o ensaísta recuse, como sempre o fez de resto, desempenhar o papel de qualquer mítica Cassandra.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Extremo Centro ou o partido com iconografia vagamente duchampiana que nunca chegou a existir

José-Augusto França
Em tempos não muito recuados, já Ler Eduardo Lourenço se referiu à interessantíssima obra de José-Augusto França Memórias para o Ano 2000 (Livros Horizonte, 2000). Conhecida como é a longa amizade entre o historiador (e crítico de arte) e Eduardo Lourenço, não custa perceber como nesse volume memorialístico (género algo raro na cultura portuguesa) sejam feitas inúmeras referências ao autor de O Espelho Imaginário. Muito recentemente, José-Augusto França decidiu dar à estampa uma espécie de sequela a que chamou simplesmente Memórias para após 2000 (Livros Horizonte, 2013). Trata-se, no fundo, de uma espécie de apêndice ao volume de há treze anos atrás pelo que não deixa de haver uma certa decepção, se fizermos uma comparação entre as duas Memórias. O livro agora editado é mais curto e, por vezes, algo redundante para quem tenha lido o anterior. Pouco importa. O segundo tomo dá ao leitor a ocasião para regressar ao primeiro e, por exemplo, revisitar a tão conturbada como fascinante época do pós-25 de Abril.
José-Augusto França relembra esse período e narra a proposta que fez ao autor de O Fascismo Nunca Existiu para criarem um partido moderadamente radical (ou seria antes radicalmente moderado?) e com  programa ideológico talvez vagamente inspirado num famoso ready-made de Marcel Duchamp. No excerto que a seguir se publica, José-Augusto França evoca também um abaixo-assinado que Eduardo Lourenço promoveu nesse mesmo ano e que foi susbscrito por 58 pessoas. Dado que as Memórias não esclarecem exactamente de que texto se trata, Ler Eduardo Lourenço recupera o texto que foi publicado no Expresso e convida os seus visitantes a descobrir quem foram os subscritores que se juntaram a Eduardo Lourenço, José Augusto Seabra, Liberto Cruz, José-Augusto França, João Palma-Ferreira, Fernando Echevarria, Vergílio Ferreira e José Sasportes. E apetece mesmo perguntar: não poderia ter sido esta uma possível Comissão Política do Extremo Centro, o partido imaginário que nunca chegou a ser fundado?

Fountain (Duchamp)

«Em Março [de 1975], eu decidira inscrever-me no PS pedindo para isso a apresentação da praxe, a dois amigos vindos do estrangeiro por preferência significativa: Sarmento Pimentel e Eduardo Lourenço. As razões da adesão, dei-as num artigo que me pediram do jornal do partido (…). Por essa altura, em conversa incerta e displicente, já em despedida no patamar da minha porta, pelas duas da manhã, como tais coisas se fazem, ainda propus ao Lourenço a fundação de um partido de Extremo Centro único extremismo possível ou único centrismo lógico na situação utópica que se ia nacionalmente gerando. Teria como emblema apropriado, e como instrumento de trabalho, um autoclismo, purificador de fezes de meio século, e lavagem de nós próprios, bem precisa... Defendera-o muitos anos antes do 25 de Abril, ante um cordial agente da oposição católica que me veio à fala, com isso se assustando. E tanto que, depois, ele seria marcelista e depois ainda soarista, simpaticamente sempre. De qualquer modo, uma acção de bom senso para opor algo aos histerismos comunista do Sul e anti-comunista do Norte, com fronteira em Rio Maior. À sua falta, considerei-me, como sempre disse, da ala anarquista do PS – solitário, felizmente e ipso facto, nessa posição. Logo em Junho os resultados eleitorais foram ironicamente contestados por [Álvaro] Cunhal ao explicar a um jornal italiano que «o processo eleitoral não era mais do que um complemento marginal da dinâmica revolucionária»: sempre o fantasma de 1917, mantido num atraso mental e político de sessenta anos. O oficial mais culto e crítico dos Capitães de Abril, Melo Antunes, que assinara um famoso mas improfícuo Documento dos Nove de urgentes gáspeas no MFA [Movimento das Forças Armadas], comentou sibilinamente para um jornal francês que «os comunistas (tinham sido) lógicos para si próprios»... Encontrei-o, mais tarde, desiludido e lento, contratado pela UNESCO em Paris. (...)
Cunhal entrara em paranóia; provocou afrontamentos no 1º de Maio seguinte e no caso simbólico da tomada do jornal República (terá o filme de Ginette Lavigne sido mostrado em Portugal?), levando, por inacreditável falta táctica, a uma manifestação enorme de resposta e apoio ao PS, três dias depois, em 22 de Maio – que me passou à porta, tendo-me nela levado até S. Pedro de Alcântara, facto único na minha biografia. Como não desejaria iludir-se Cunhal se, dias atrás, a Associação Portuguesa de Escritores, num congresso dominado pelos comunistas, ao fim aclamara Vasco Gonçalves, a pé e unânime? Não terei sido única mas sem dúvida rara excepção, ao ficar sentado, na sala sobreexcitada, à vinda ao palco do coronel primeiro-ministro que discursou qualquer coisa a propósito de tanto sucesso...
Não fui, porém, excepção, na minha própria comunicação (que publiquei no Jornal Novo), friamente recebida, como a de Sophia [Mello Breyner], voltadas ambas para uma liberdade de criação e de expressão que nos parecia ser condição necessária da revolução que muitos de nós ali presentes (embora nem sempre capazes de reivindicar a sua natureza) tínhamos ajudado a fazer. Enfim...
Pouco antes, o Eduardo Lourenço procurara-me na Universidade, com o José Augusto Seabra e um texto-proclamação contra a ditadura intelectual que se instaurava. Redigira-o ele, aumentara-o o Seabra, e devia acrescentá-lo eu, mas disso me abstive para evitar mais confusões de estilo, e apenas o subscrevi. Outras assinaturas o apoiaram depois, como a de Sophia de Mello Breyner (e de quem mais?) que apareceram na publicação da imprensa, que não encontro» (Memórias para o Ano 2000, pp. 242-243). 



terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Por causa de uma famosa marca de sapatos

Biblioteca Joanina (http://static.publico.pt/coleccoes/edicoes_facsimiladas/#inicio)
O jornal Público tem vindo a pôr à venda a interessante «colecção de 1.ªs edições Fac-similadas que reúne 16 obras emblemáticas da cultura portugusesa», associando-se deste modo às comemorações do quinto centenário da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. A série iniciou-se no passado dia 8 de Outubro com Os Lusíadas e encerrará na próxima semana com Coração, Cabeça e Estômago de Camilo Castelo Branco. Hoje, o volume publicado é Mensagem, como se sabe o único livro editado em vida de Fernando Pessoa. Dois dias antes do aparecimento às terças-feiras de cada um dos dezasseis volumes, o Público apresenta um texto de um especialista que, de forma breve e rigorosa, apresenta o livro em causa. Na edição do passado domingo, António Apolinário Lourenço encarrega-se dessa tarefa e narra o delicioso episódio que justifica o título do texto de hoje deste blog. «O título inicialmente previsto para o livro, Portugal, foi alterado já na tipografia, para não coincidir com o de uma famosa marca de sapatos» (Público, 12/I/2014, p. 55).


Poder-se-á discutir a relevância que Mensagem tem no universo literário pessoano e até no peculiar modo como Eduardo Lourenço interpreta ontologicamente a poesia do autor de Tabacaria. De qualquer modo, não podem restar dúvidas que, sem Mensagem, o luminoso Fernando Rei da Nossa Baviera não teria um dos começos mais fascinantes do ensaísmo português do nosso tempo. Ler Eduardo Lourenço recupera esses parágrafos inesquecíveis e lembra os seus visitantes que ainda estão a tempo de encontrar Mensagem num quiosque perto de si.


«Custa-me imaginar que alguém possa um dia falar melhor de Fernando Pessoa que ele mesmo. Pela simples razão de que foi Pessoa quem descobriu o modo de falar de si tomando-se sempre por um outro. E como os deuses lhe concederam um olhar imparcial como a neve, o retrato que nos devolve do fundo do seu próprio espelho brilha no escuro como uma lâmina. Quando encarnada em figuras que parecem vivas – e ele supunha mais vivas do que ele – essa descoberta de si como outro, convertida em jogo da sua verdade, chamou-se Heteronímia. Talvez nada melhor que esta palavra abstrusa de sua invenção, tornada hoje quase popular, indique a que ponto um dos mais estranhos espíritos do século XX se converteu num mito. Não me vou prestar ao ridículo de esclarecer o que é um mito depois de o mesmo Pessoa ter configurado da sua essência a versão exacta:



O mito é o nada que é tudo.
………………………………
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

Mito, vida que não passa na vida que passa – e toda passa –, lenda a escorrer da realidade. Foi para Ulisses, encarnação da primeira viagem iniciática da nossa alma futuramente grega, como ele a sonhava, que o autor de Mensagem compôs os versos famosos. Não menos mágica é, para nós, a aventura daquele que era, por fora e para os outros, Fernando Pessoa e que por dentro não tinha nome próprio, como todos nós. Só que ele o sabia e nós menos do que ele. Como Ulisses, sem para si existir nos bastou. Por não ter sido foi vindo e nos criou, tais que já não podemos contemplar o céu da nossa cultura sem o ver a ele no centro, convertido em «mito brilhante e mudo», irradiando a sua luz enigmática». 

Fernando Pessoa por Mário Botas (1982)

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Uma pergunta a Gastão

Gastão Cruz
Com o título Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista e outros ensaios, encontra-se praticamente pronto a seguir para a tipografia o segundo volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço. Organizado em torno do livro, originalmente publicado em 1968, que estuda a poesia de João José Cochofel, Joaquim Namorado e Carlos de Oliveira, o segundo tomo, para além dos três capítulos de Sentido e Forma e dos igualmente fundamentais Prólogo e Considerações Finais, incluirá um conjunto bastante vasto de textos, alguns deles inéditos e a maior parte vindos a público em periódicos de acesso hoje bastante difícil ao leitor comum, que permitirão o conhecimento mais vasto e fundamentado da(s) perspectiva(s) que Eduardo Lourenço tem sobre um tema, o chamado neo-realismo, que nos dias de hoje continua a suscitar interesse e discussão. Inclusivamente ao próprio ensaísta que, em livro a que este blog já se referiu, manifestou, uma vez mais, a pertinência que atribui ao assunto.
Com efeito, há cerca de ano  e meio os investigadores e poetas Luis Maffei e  Pedro Eiras deram à estampa um conjunto de ensaios que tem de tanto de invulgar como de aliciante. Trata-se de A Vida Repercutida – Uma Leitura da Poesia de Gastão Cruz (Lisboa, Esfera do Caos, 2012). Nele o leitor encontra ainda, além de uma antologia de poemas e de um ensaio inédito do autor de A Morte Percutiva, uma iniciativa que é, no mínimo, muito curiosa. De facto, Pedro Eiras e Luís Maffei desafiaram uma série de leitores de Gastão Cruz a elaborar uma questão ao poeta que, deste modo, concede uma muito peculiar e relevante entrevista. Eduardo Lourenço encontra-se entre os questionadores de Gastão Cruz que, assinale-se, já dedicou à obra do autor Pessoa Revisitado alguns textos decisivos. Que pergunta escolheu Eduardo Lourenço para dirigir a Gastão Cruz? Vale a pena recuperá-la. 

Ei-la: Reconhece alguma dívida para com a poesia neo-realista? Qual é, ainda hoje, a sua visão dessa poesia?
A pergunta só por si justificaria vários ensaios, mas Ler Eduardo Lourenço considera também absolutamente modelar a breve resposta (pouco mais de duas páginas) do poeta e, convém lembrar os mais esquecidos, um dos maiores conhecedores da poesia portuguesa do século XX e não só. Modelar pelo rigor e pela clareza. Pela informação que discretamente manifesta (o episódio Mário Cesariny tem tanto de delicioso como de teoricamente revelador) e pela síntese admirável que oferece do chamado neo-realismo nas suas diferentes vozes e modulações. E sobretudo porque abre uma hipótese de leitura que parece tentadora: fazer um confronto entre as poéticas de Eduardo Lourenço e de Gastão Cruz a partir das interpretações que ambos fazem dos poetas do Novo Cancioneiro que encontraram na revista Vértice, de que Eduardo Lourenço foi um dos primeiros responsáveis e onde chegou a publicar um poema no famoso e decisivo número 3, um simbólico porto de abrigo.
 
foto Ler Eduardo Lourenço

domingo, 5 de janeiro de 2014

Eusébio*

Dois mil anos são incomensuráveis. Salvo na óptica trans-histórica do nascimento de Cristo que será a do jubileu romano do ano 2000. Esses dois mil anos, como História e como Cultura, mesmo apenas no quadro “ocidental”, são um tempo interiormente fracturado, sem nenhum fio ou trama orgânicos que permitam devolvê-lo a um sujeito político, histórico-cultural ou mítico, digno desse nome. Tempo crepuscular do Império Romano; coexistência caótica desse mesmo império com os chamados Bárbaros, nossos futuros pais europeus; lenta e dolorosa emergência da cultura antiga, perdida, para a luz, há duzentos anos julgada negra da Idade Média; revisitação criadora da mesma cultura antiga, invenção da ciência moderna que é ainda a nossa; e, enfim, ininterrupta desintegração da cultura cristã, começada com o Renascimento, tais foram alguns dos “tempos” destes dois mil anos. Nestas temporalidades heterogéneas e heteróclitas, que símbolos emergem dignos, ainda, não só de lembrança como de comemoração num fim de século que diz adeus a vinte séculos que fizeram o mundo como o conhecemos? Que ícones, ídolos ou anti-ídolos sobrenadam ainda na nossa memória ocidental, no momento em que, submersa por uma informação incontrolável, já nem a si mesma se vive como História? A História Universal é uma ideia e um imperativo inculcados pela visão bíblica do mundo. Como ideia, data de Herder. Antes dele, era um repertório genealógico que prolongava o discurso mítico do Génesis. E é claro que esse discurso não tinha vigência em épocas pré-bíblicas, nem no interior de outras cronologias e culturas, além de não ser possível nas ditas épocas sem “História”. As escolhas de momentos ou personalidades susceptíveis de simbolizar estes dois mil anos, arbitrariamente talhados na manta rota do tempo, são inumeráveis. Elas são determinadas pelo conhecimento que delas possuem os que as consideram da sua linhagem ou precisam delas para legitimar o seu próprio estatuto de herdeiros. Escolher o Cid ou Rolando é escolher uma linhagem tribal, antes do universal. À parte os que nestes dois mil anos fundaram “religiões”, e a esse título são incomemoráveis por continuarem presentes, as outras grandes figuras da nossa Cultura, além de incontáveis, devem o seu estatuto ao amor que lhes devotam as culturas para quem eles são património activo e fonte do seu imaginário. Durante os dois mil e novecentos anos de vigência cultural greco-latina, Virgílio, mas também Horácio ou Ovídio, foram imaginário europeu e mesmo ocidental, embora caiam fora dos dois milénios que findam. Quem, como eles, usufruiu e, sobretudo, usufrui ainda de uma glória comparável? E em que domínio? E em função de que propósito, não só presente, como futurante? A ideia de um panteão cultural universal é tão utópica como a de História Universal. Aliás, um panteão não tem mais coerência que um dicionário: é uma convivência póstuma de deuses que pouco ou nada aproxima, reunidos por obra e graça da Indiferença. Não são outra coisa os repositórios de celebridades que chamamos Enciclopédias. Lado a lado, repousam não só génios de diversa e até inconciliável espécie (Nostradamus e Galileu não são génios da mesma espécie), como absolutamente incomparáveis. O que não nos impede de os comparar sem dúvida para nos inventarmos o panteão ideal de uma Humanidade que transcenda as clivagens religiosas, filosóficas, culturais e étnicas. Esta mitologia das páginas cor de rosa de todos os Larousse funciona como no Ocidente cristão funcionava outrora o (Flos Sanctorum) que hoje só tem emprego nos calendários e na meteorologia. Os santos da nossa época são outros. Eusébio, por exemplo, que há dias manifestava a sua frustração por ter sido designado como o sexto melhor jogador do nosso século. Sem se ter por incomparável – o que, se calhar, até é – Eusébio pensava num segundo lugar. Que foi o melhor do seu tempo português, quem o duvida? Que talvez tenha sido o segundo ou terceiro do tempo mundial de Pelé, ou de Di Stefano é hipótese que não escandaliza. A verdade é que, por incomparável, ele ou os outros ídolos do seu tempo nem deviam admitir ser comparados. De qualquer modo, o que não tem sentido é comparar gente de épocas, contextos, códigos diversos. Não só Alexandre com Aníbal ou este com Napoleão, comparação clássica, mas também Galileu com Newton ou com Einstein (que são, afinal, um só “homem”), mas muito menos Gil Vicente com Shakespeare, ou Monteverdi com Mozart. Antes de estarem isolados pelo génio, cada um está isolado pelo seu tempo. No tempo português, a hora de Eusébio não foi a da Vitor Silva, nem a de Pinga ou de Peyroteo, como a de Borg não foi a de Rod Laver ou a de Coppi a de Merckx. Essa gente nunca se conheceu. Estão separados dos outros como as estrelas, mesmo próximas. Ninguém os pode comparar. Que mais não fosse, só por isso já seriam “incomparáveis”. Só Deus os viu jogar juntos. Mas não confiou as suas apreciações a ninguém. Que isso console o nosso mal comparado Eusébio. 




*Eusébio [da Silva Ferreira] morreu esta madrugada. O texto de Eduardo Lourenço que hoje aqui se recorda foi publicado com o título Incomparáveis ou a tristeza de Eusébio na revista Visão a 21 de Janeiro de 1999 (p. 91) e constitui, de certa forma, uma homenagem à simplicidade e à grandeza do famoso Pantera Negra.